A locução latina ad hoc significa literalmente «para isto». É usada em português e em muitas outras línguas, em diversos ramos do saber, desde o direito à informática, para designar alguém ou algo nomeado, constituído ou concebido para exercer ou cumprir determinada missão, função ou tarefa.
O que o consulente indica é um fenómeno de contaminação. A expressão latina, devido às circunstâncias particulares da sua utilização, terá sofrido uma evolução semântica que alterou completamente o seu significado. De expressão culta, usada em meios académicos e políticos, ad hoc terá adquirido certa carga pejorativa, que poderá inclusivamente vir a limitar a sua utilização nos referidos meios. Lembro-me, por exemplo, dos célebres exames ad hoc, de acesso ao ensino superior, que foram extintos, e cujo nome não foi repescado quando se criaram as provas que os substituíram, já não a nível nacional, mas da responsabilidade de cada estabelecimento de ensino.
Seja como for, a contaminação a que se refere o consulente não se limita a Trás-os-Montes. Lembro-me de ouvir a expressão ad hoc no sentido de «atabalhoadamente», sobretudo em Lisboa, na boca de pessoas de instrução média e até superior. Actualmente possuímos um recurso valioso, a Internet, que nos permite confirmar a existência e até a frequência dessa contaminação, a qual, estou em crer, deve ser contrariada, sob pena de se perder uma expressão extremamente útil na acepção que lhe corresponde por direito próprio.
Sobre a origem da contaminação não encontrei nada digno de registo na bibliografia consultada, mas nem por isso deixo de avançar duas hipóteses de explicação.
(1) Poderá ter havido contaminação pela expressão latina ab hoc et ab hac, que significa literalmente «deste e desta». Falar ab hoc et ab hac é falar do que se sabe e, sobretudo, do que não se sabe, ou seja, de tudo e mais alguma coisa, de forma desordenada, atabalhoada. Esta expressão tem origem num provérbio medieval, que rezava, na sua versão completa:
Quando conveniunt Domitilla, Sibylla, Drusilla Sermonem faciunt et ab hoc et ab hac et ab illa.
«Quando se juntam a Daniela, a Gabriela e a Rafaela,
Falam deste e desta e daquela.»
É uma expressão hoje em dia muito menos conhecida que ad hoc, mas a semelhança fonética e gráfica entre as duas preposições (ab e ad) poderia ter provocado a contaminação semântica em tempos idos, quando este ditado medieval era mais usual. Só um profundo estudo filológico-histórico poderia confirmar ou desmentir esta explicação, que me parece possível, embora pouco provável.
(2) O mau funcionamento de muitas comissões ou outras instituições criadas ad hoc poderá ter provocado o desvio semântico. Teoricamente, o que é constituído ou concebido ad hoc, ou seja, para um fim particular, reúne todas as aptidões e competências para o efeito, mas poderá não ter sido sempre assim. Poderá ter havido certo abuso na utilização deste latinismo, que se foi aplicando a comissões ou grupos de trabalho que não reuniam as ditas competências, e aos quais mais caberia o luso epíteto «sem rei nem roque» do que o latino ad hoc...