O advérbio samicas, que geralmente significa «talvez» e já no século XVI era tido por vulgar e rústico, foi também usado como nome, para designar um homem tido por insignificante, como, aliás, confirma o registo da palavra no Vocabulário Portuguez e Latino (publicado entre 1712 e 1728), que o consulente menciona. Mas dicionários muito mais recentes também acolhem este arcaísmo: o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa1 classificam samicas também como vocábulo arcaico e/ou popular equivalente a «maricas, homem fraco ou efeminado», registo que já reflete uma extensão semântica talvez mais tardia.
Do contexto em apreço, pertencente ao relato de um dos casos ocorridos no século XVII, em que vários impostores diziam ser D. Sebastião, pode supor-se que o sujeito do enunciado insinua que quem se lamentava não era o rei, mas outra pessoa. Não parecendo incompatível com o significado de «pobre de espírito» (nem com a de «maricas»2), esta ocorrência de samicas pode também entender-se como mais próxima da incerteza associada ao uso adverbial Sendo assim, a sequência «a alma de samicas» quererá dizer «a alma de não se sabe quem» ou «a alma de um desconhecido». Note-se, porém, que, nas fontes consultadas para elaboração desta resposta1, não foi possível achar outras atestações deste uso de samicas em sentido indefinido.
Sobre o nome samicas, convém registar as considerações que lhe dedicou Paul Teyssier (1915-2002) em A Língua de Gil Vicente (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 102):
«O advérbio samica(s) era de tal modo identificado com a linguagem dos Vilãos que foi utilizado como substantivo para designar um labrego, um homem estúpido. Os dicionários registam-no com este sentido, por exemplo, Caldas-Aulete: "Samicas (pop.): homem sem ação; maricas: indivíduo pobre de espírito.» Já em Bluteau se encontrava uma definição análoga: "Samicas chama o vulgo ao homem coytado, pobre de espírito". E dava-se o exemplo seguinte: "Hum ratinho agreste, um samicas e hum negro muyto buçal" (Mariz, Vida de S. João Fagundo, f. 108v).»4
1 Este registo contemporâneo já se acha no Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1913), de Cândido de Figueiredo (1846-1925) e no dicionário de Caldas Aulete, citado mais abaixo na resposta.
2 O termo samicas será, portanto, preconceituoso e depreciativo, refletindo uma atitude a que hoje se chamaria homofóbica. Não é impossível, portanto, que «alma de Samicas» constitua uma insinuação, a de que as lamentações atribuídas na frase ao impostor soassem menos másculas do que, à época, era aceitável.
3 Além das obras indicadas no texto, foi também consultado o Corpus de Português, de Mark Davies, o qual só faculta resultados quinhentistas e apenas do uso adverbial.
4 A referência final corresponde à obra História do Bem-Aventurado São João de Sahagun, de Pedro de Mariz (c.1550-1615).