Dicções antigas - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Dicções antigas

Em tempo de el-rei D. Afonso Henriques capapelle era nome de uma certa vestidura; e não somente de tanto tempo, mas também antes de nós um pouco, nossos pais tinham algumas palavras que já não são agora ouvidas, como compengar, que queria dizer comer o pão com a outra vianda; e neminchalda, o qual tanto valia como agora nemigalha (1), segundo se declarou poucos dias há uma velha que por isto foi preguntada, dizendo ela esta palavra. E, era a velha a este tempo, quando isto disse, de cento dezasseis anos de sua idade. Estas (diz Cicero no Terceiro Livro a seu irmão Quinto), as velhas, digo, nos diz ele que guardam muito a antiguidade das línguas porque falam com menos gente.

Acarão, que quer dizer junto ou a par; e samicas, significa por ventura; e outras piores vozes, ainda agora as ouvimos e zombamos delas; mas não é muito de maravilhar (diz Marco Varrão) que as vozes envelheçam e as velhas alguma hora pareçam mal, porque também envelhecem os homens cujas vozes elas são. E isto é verdade: que a formosa menice depois de velha não é para ver; e, assim como os olhos se ofendem, vendo as figuras em que eles não contentam, assim as orelhas não consentem a música e vozes fora do seu tempo e costume. E mui poucas são as cousas que duram por todas ou muitas idades em um estado, quanto mais as falas, que sempre se conformam com os conceitos ou entenderes juízos e tratos dos homens; e esses homens entendem, julgam e tratam por diversas vias e muitas: às vezes, segundo quer a necessidade; às vezes, segundo pedem as inclinações naturais.

O uso destas dicções antigas (diz Quintiliano) traz e dá muita graça ao falar, quando é temperado e em seus lugares e tempos. A limitação ou regra será esta, pela maior parte: que das dicções velhas tomemos as mais novas e que são mais vizinhas do nosso tempo; assim como também das novas havemos de tomar as mais antigas e mais recebidas de todos, ou da maior parte.

Ainda porém que não sempre isto é acertado; porque muitas vezes algumas dicções que há pouco são passadas são já agora muito aborrecidas, como asem, ajuso, acajuso (2),a buso, hoganno (3), algorem (4), e outras muitas. E porém, se estas e quaisquer outras semelhantes as metermos em mão de um homem velho da Beira, ou aldeão, não lhe parecerão mal; Mas também não sejam muitas, nem queiramos vangloriar-nos por dizerem que vimos muitas antiguidades; porque, se essas dicções antigas que usamos (as quais, sendo moderadas, nos haviam de aformosentar) forem sobejas, farão muito grande dissonância nas orelhas de nossos tempos e homens.


(1) = nem migalha.
(2) Para baixo, cá para baixo.
(3) Este ano.
(4) Alguma coisa.

 

Fonte

Gramática de Linguagem Portuguesa, 1ª. ed. 1553; 2ª. ed. 1871, in "Paladinos da Linguagem I".

Sobre o autor

Fernão de Oliveira (Aveiro, 1507 – 1581) foi ordenado frade em virtude das suas posições heterodoxas, apesar de ter sentido o desagrado do Tribunal da Santa Inquisição, o que lhe trouxe algumas vicissitudes. Foi também gramático e consultor bélico-naval renascentista. É da sua autoria a primeira gramática portuguesa, a Grammatica da lingoagem portuguesa, editada em 1536. Exerceu ainda outra atividades nomeadamente a de piloto, teórico de guerra e de construção naval.