DÚVIDAS

O uso das palavras queixa e reclamação

As questões que apresento têm basicamente que ver com o mais correcto significado a atribuir às palavras queixa e reclamação, designadamente para efeito do seu emprego no contexto de um sítio Internet de um serviço público responsável por funções de autoridade do Estado.

Afigura-se-me que a palavra queixa deva ser usada para significar as circunstâncias em que um particular, dirigindo-se ao órgão ou serviço da administração do Estado competente em razão da matéria ou facto em questão, se reporta às consequências na sua esfera privada resultantes da acção ou omissão de terceiro e demanda a correspondente intervenção da autoridade com poder jurisdicional para que actue em conformidade.

Diferentemente, parece-me que a palavra reclamação deva ser empregada para significar as circunstâncias em que o também particular se dirige ao órgão ou serviço da administração do Estado competente em razão do foro, só que desta vez para exigir, reivindicar ou protestar em relação a uma acção ou omissão tida pela referida entidade no exercício dos poderes de autoridade em que está investida, a qual gerou impacto na esfera dos seus interesses privados.

Eis, pois, o âmbito e teor das dúvidas que apresento.

Resposta

Embora usemos, com bastante frequência, no nosso dia-a-dia, os dois termos – queixa e reclamação –, como formas de reacção, de resposta, a situações em que nos sintamos atingidos, injustamente, por actos de incorrecção, de impropriedade verbal, de abuso de poder, enfim, de todo o tipo de atitudes com as quais nos sentimos agredidos e desrespeitados, a verdade é que cada uma dessas palavras representa realidades diferentes e não deve ser utilizada arbitrariamente. E a dúvida apresentada pelo consulente deve-se, precisamente, ao facto de tanto um termo como o outro poderem ser confundidos, porque se vulgarizaram.1

Embora saibamos que se trata de termos do foro jurídico, verifiquemos, em primeiro lugar, o que nos dizem os dicionários.

Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004), a palavra queixa, para além de «acto ou efeito de se queixar; lamúria; lamentação; motivo de ressentimento; querela», designa, também, «exposição de agravos a uma autoridade para pedir reparação», o que faz sugerir o conceito de «queixa-crime», termo do domínio do direito que, por sua vez, designa a «participação de uma ocorrência, da iniciativa de um particular, a uma autoridade policial ou judicial, o que dá origem a um processo criminal».

Por sua vez, a reclamação («do latim reclamationem, grito de desaprovação») é o «acto ou efeito de reclamar; protesto; queixa; reivindicação ou exigência. A nível do direito, designa a «impugnação da decisão junto do próprio órgão que a proferiu».

Tendo em conta estas explicações, parece-nos que o consulente tem razão em relação aos dois conceitos, pois para queixa sugere que esta se diferencie da reclamação pela «demanda a correspondente intervenção da autoridade com poder jurisdicional para que actue em conformidade».

Apesar da vulgarização do termo, a queixa parece estar associada a um conteúdo de natureza penal, mas, de acordo com o Dicionário Jurídico — Direito Civil, Direito Processual Civil e Organização Judiciária (Ana Prata, ob. cit., Lisboa, Livros de Direito/Moraes Editores, 1978), enquadra-se no domínio do processo civil, enquanto «recurso, previsto no Código de Processo de 1939, a interpor contra a decisão de não admitir um recurso ou de o admitir em termos de ele não ter efectiva utilidade». Informa-nos, ainda, este dicionário de que «este recurso foi substituído por reclamação no Código Processual Civil actual» (pp. 433-434).

Por sua vez, a noção que temos de reclamação está associada a um acto formal sobre questões de índole administrativa (de natureza pública), mas também no âmbito do direito privado (livros privados), o que pressupõe a intervenção de órgãos fiscalizadores, como, por exemplo, a ASAE.

Por outro lado, o Dicionário Jurídico (ob. cit, p. 438) dá-nos uma outra perspectiva para o valor de reclamação:

«forma de impugnação de decisões judiciais, quer estas sejam sentenças quer despachos. Reage-se reclamando contra a especificação e questionário (art.º 511.º, CPC), contra as respostas aos quesitos (art.º 653.º, CPC), como, nalguns casos, contra sentença nula, obscura, ambígua ou errada quanto a custas e multa (cfr. art.º 668.º e 669.º, CPC),»

Sem nos esquecermos da linha ténue que separa os dois termos e baseando-nos no uso, que acaba por construir o padrão, apercebemo-nos de que, enquanto se banalizou o conceito de reclamação (que, muitas vezes, surge como resultado de um impulso), tem-se um certo respeito (ou receio) quando se entra no domínio da queixa, pois, apesar de ser encarada como um direito de qualquer cidadão, implica o recurso à justiça para fazer valer as suas razões.

1 O conteúdo desta resposta teve o auxílio da jurista Teresa Ferreira da Costa.

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