«Bodas vermelhas» surge no primeiro verso do poema Estranho Fulgor, de Pedro Homem de Mello, poema este que, por sua vez, está inserido no seu livro Bodas Vermelhas (1947). Este poema, Estranho Fulgor, constitui a letra do fado (com o mesmo nome do poema) cantado por Camané, de que o consulente nos fala.
Como a expressão «bodas vermelhas» não se encontra dicionarizada, isso indica-nos que não faz parte daquele leque de designações especiais associadas à palavra boda, identificativas da quantidade de cada cinco anos que se comemoram, tais como: «bodas de madeira — 5 anos; bodas de estanho — 10 anos; bodas de cristal — 15 anos; bodas de porcelana — 20 anos; bodas de prata — 25 anos; bodas de pérola — 30 anos; bodas de coral — 35 anos; bodas de esmeralda — 40 anos; bodas de rubi — 45 anos; bodas de ouro — 50 anos; bodas de brilhante — 75 anos» (Deonísio da Silva, De onde Vêm as Palavras, Frases e Curiosidades da Língua Portuguesa, São Paulo, Ed. Mandarim, 1997, p. 44).
Fazendo parte de um poema, de um texto literário, só através da sua análise se poderá procurar descodificar o sentido de «bodas vermelhas». Trata-se, decerto, de uma metáfora usada pelo sujeito poético para representar uma determinada ideia, criando, assim, uma imagem do que pretendia dizer.
De qualquer modo, e antes de entrarmos na análise dessa expressão no poema, importa conhecer a origem e o significado de boda: «do latim vota, plural de votum, voto, promessa. Ao contrário de outras línguas neolatinas, como o francês e o italiano, que conservam a tradição romana de dar às práticas rituais e profanas do casamento o nome de núpcias, o português e o espanhol preferiram denominá-lo de bodas, tendo em vista os votos feitos pelos noivos.» Assim, o termo bodas, que, «geralmente, é encontrado no plural (Bodas de Canaã) para indicar festa ou celebração de aniversário de casamento, de ordenação sacerdotal, de sagração episcopal, é também palavra que se emprega no singular — A boda e a baptizado não vás sem ser convidado» (Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões Vernáculas, São Paulo, Ed. Ática, s. d.).
Deste estudo retiramos a ideia de que boda se refere a festa ou celebração de casamento. Portanto, mesmo num texto literário, cujo sentido é essencialmente figurado e em que as palavras ganham um outro valor, a palavra boda estará associada a festa, a celebração de matrimónio. Mas isso não nos basta, porque tal termo surge, no poema, acompanhado por um adjectivo caracterizador — vermelhas. Ora, vermelhas é um vocábulo indicativo de uma cor, uma cor forte, associada a sangue, a vinho, a prazer. Sobre vermelho, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant no seu Dicionário de Símbolos (Lisboa, Teorema, 1994, p. 686) dizem-nos: «o vermelho vivo, diurno, solar, centrífugo, incita à acção; ele é a imagem de ardor e de beleza, de força impulsiva e generosa, de juventude, de saúde, de riqueza, de Eros livre e triunfante.»
Feito o levantamento dos sentidos que as duas palavras podem simbolizar, debrucemo-nos sobre o seu valor no poema Estranho Fulgor, o que nos obriga a que encaremos a expressão no conjunto do texto, razão pela qual o transcrevemos:
Deu-me Deus bodas vermelhas
E palavras como abelhas
Esquecendo-se de mim.
Deu-me a paz de alguns minutos
E palavras como frutos
Esquecendo-se de mim.
Deu-me as ideias formosas
E palavras como rosas
Esquecendo-se de mim.
Deu-me a voz que persuade
Muito mais do que a verdade
Esquecendo-se de mim.
Mas um dia, veio a dor
Veio o castigo sem fim
Veio este estranho fulgor
Apartando o bem do mal
E vi que Deus afinal
Já se lembrava de mim...
A abrir o poema, logo no primeiro verso da primeira estrofe, «bodas vermelhas» aparece como uma dádiva, uma oferenda de Deus ao sujeito poético e, ao encabeçar o texto, tal benesse divina sobressai como algo que ele mais valoriza. A ideia de ser privilegiado por Deus transparece ao longo do poema, e as «bodas vermelhas» surgem em primeiro plano, secundadas por «palavras como abelhas», que, por sua vez, logo serão seguidas por outros versos que evidenciam uma lista de benefícios invulgares que o colocam num lugar de destaque: «a paz de alguns minutos», «palavras como frutos», «as ideias formosas», «palavras como rosas», «a voz que persuade». O que desconcerta nestas quatro primeiras estrofes em que o sujeito poético se assume como um ser privilegiado por Deus é a forma insólita como termina cada uma dessas estrofes, afirmando que Deus se esquecera de si — «esquecendo-se de mim» —, usando um gerúndio que notoriamente marca o prolongamento da acção, a do esquecimento divino, como se ele fosse relegado e renegado pelo mesmo Deus que o escolhera como digno dos privilégios que enumerara.
Não há qualquer dúvida de que «bodas vermelhas» remetem para algo positivo, eufórico e ligado a bem e a prazer. Poderá retirar-se daí sentidos como o de casamento como símbolo de festa, de juventude, de arrebatamento, como motivo de celebração e de alegria. Fonte de vida, de saúde, de prazer e de euforia, representado pelo vermelho do sangue e do vinho, «bodas vermelhas» encaixam perfeitamente com a simbologia das «abelhas» («palavras como abelhas»), produtoras do mel, «alimento primeiro, alimento e bebida ao mesmo tempo, a exemplo do leite, ao qual muitas vezes é associado, o mel é antes de mais um símbolo vasto de riqueza, de coisa completa e sobretudo de doçura, opondo-se à amargura do fel» (Dicionário de Símbolos, ob. cit., p. 447).
Da leitura da última estrofe, apercebemo-nos de que o sujeito poético valoriza tais bens apenas quando os perde, ou, então, quando toma consciência do privilégio que eles encerram, pois encarava-os como algo natural e normal, próprios de si, não os associando a uma dádiva divina. Através da adversativa mas com que introduz a última estrofe, marcando o contraste com a realidade anterior das primeiras quatro estrofes, o sujeito revela o conhecimento da «dor», encarada como «o castigo sem fim», que lhe deu a oportunidade de conhecer o mal e de, assim, poder reconhecer o valor do bem (dos bens) que sempre tivera.