Começo por fazer um reparo: a discussão sobre o uso do hífen em compostos e locuções, como é o caso de pé-de-moleque/«pé de moleque», relaciona-se não com a Base XVI mas, sim, com a Base XV do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Mas a questão do consulente é extremamente pertinente, porque, apesar de os dicionários referidos estarem de acordo quanto à perda do hífen em pé de moleque e de outras palavras que incluem elementos de ligação, o tratamento lexicográfico destas formas, como se vê, varia. Esta divergência tem três vertentes que passo a comentar:1
1. Ao perder o hífen, pé de moleque deixa de ser palavra composta para se tornarem uma sequência de palavras gráficas. Acontece que um dos critérios de identidade mais consensuais na tradição lexicográfica portuguesa e brasileira é o de a forma de citação dever corresponder a uma palavra gráfica (sequência de caracteres delimitada por espaços em branco ou sinais de pontuação). No entanto, a Base XV, 6.º, do AO90 parece estipular que uma série de formas de citação perdem o hífen, passando de palavras gráficas a sequências de palavras gráficas. Assim, em duas das obras mencionadas pelo consulente, como aliás noutras — o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora e o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) —, não se retirararam da nomenclatura as palavras que caem sob acção dessa norma, mesmo contrariando o critério formal acima referido.
2. Se pé de moleque se tornou uma sequência de palavras gráficas, como tratá-lo em obras lexicográficas, como entrada principal, ou secundária? Na edição de 2009 do Dicionário Houaiss, de modo a não violar o critério formal para existência de chamadas (entradas principais) na nomenclatura, incluiu-se pé de moleque como subentrada (ou entrada secundária). É normal registar apenas como entradas secundárias quaisquer sequências de palavras gráficas (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e Dicionário Verbo pré-AO90). Mas, assinale-se, dadas a tradicional heterogeneidade de critérios ortográficos e a assistematicidade na grafia de compostos com formas de ligação/locuções substantivas e adjectivas, numa mesma obra, e mais ainda entre diferentes obras, é crível que pé de moleque já estivesse atestada sem hífen em algumas obras lexicográficas.
3. Coloca-se finalmente o problema da descrição e classificação gramaticais de pé de moleque. Não há uma definição unívoca do que sejam compostos ou locuções, podendo os termos ter intenções diferentes consoante a obra, a disciplina específica, ou o propósito e contexto em que são usados. Tomando como base a leitura do AO90, Base XV, 1.º e 6.º, lê-se que os compostos hifenizados não compreendem sequências com formas de ligação, sendo estas tidas como preposições, conjunções e contracções; por seu lado, as sequências com formas de ligação aparecem designadas como locuções de vários tipos (substantivas, adjectivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais). À luz do AO90, pé de moleque inclui-se, portanto, entre as chamadas «locuções substantivas», dado que o núcleo da expressão é um substantivo. Contudo, como já vimos, variam os critérios seguidos por cada dicionário, pelo que pé de moleque pode figurar quer como composto, e então é classificado como substantivo masculino, quer como locução, sem outra classificação. Relativamente ao tratamento dado a palavras como pé-de-moleque nos vocabulários ortográficos actualmente disponíveis em Portugal, verifica-se que a opção foi a mesma adoptada pelo VOLP da ABL: pé de moleque tem estatuto de entrada, sendo classificado como substantivo masculino.2
Acrescente-se que, em alternativa ao tratamento dado pelos dicionários e vocabulários ortográficos aqui mencionados, há perspectivas assentes na definição de composto e de locução como unidades de sentido ou aderências semânticas. Este ponto de vista tem sido defendido nas páginas do Ciberdúvidas, por D´Silvas Filho, que considera que são de manter os hífenes em locuções que contenham elementos de ligação, respeitando a tradição que permitia, com o recurso ao hífen, distinguir as locuções, cujo sentido é figurado (no caso, pé-de-moleque, «doce consistente feito de açúcar ou rapadura com amendoim torrado», segundo o Dicionário Houaiss), das sequências gráficas, cujo sentido é composicional, isto é, cujo sentido é resultado da soma dos significados das palavras que as constituem (por exemplo, pé de moleque = «pé que é de um moleque»).
Por último, a respeito das perguntas finais, não encontro elementos que definam com clareza o estatuto jurídico da Academia Brasileira de Letras (ABL) em questões normativas. Tradicionalmente, é-lhe atribuído, se não mesmo reconhecido, um papel regulador, que parece decorrer do propósito definido nos seus estatutos (art.º 1.º): «[a ABL] tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional». No entanto, nesses estatutos ou mesmo na Constituição da República Federativa do Brasil, não encontro explícita a definição da ABL como entidade reguladora do uso da língua portuguesa no Estado brasileiro. Não posso, por isso, emitir qualquer parecer sobre a divergência lexicográfica entre o VOLP da ABL e a edição de 2009 do Dicionário Houaiss, nem apurar qual das duas opções deve vigorar no ensino do português no Brasil. Esta é, pois, uma questão em aberto, que poderá beneficiar dos esclarecimentos que consulentes competentes nos enviarem.
1 Agradeço ao dr. José Pedro Ferreira, um dos coordenadores do Vocabulário Ortográfico do Português, os esclarecimentos em que baseio a maior parte dos pontos abordados nesta resposta e a nota 2 da mesma. Qualquer imprecisão ou erro são da minha responsabilidade.
2 Dada a importância que o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) passou a ter no contexto português (ver Abertura de 10 de Dezembro de 2010), pude saber que, no tratamento de pé de moleque e compostos/locuções semelhantes, que deixam de ser hifenizados, foram seguidos os seguintes critérios:
— Para ganhar em clareza e transparência, mantiveram-se como entradas principais as formas que perderam o hífen, de modo que os consulentes possam identificar o que foi mudado.
— Grafaram-se por princípio todas as locuções sem hífen, em observância do disposto no AO90. De notar que houve uma mudança subtil entre o Acordo Ortográfico de 1945, em que "sequências com formas de ligação" eram vistas como compostos, e o AO90, em que passaram a ser vistas como locuções (note-se a redacção de toda a Base XV, especialmente das alíneas primeira, terceira e sexta, e os exemplos). Embora, como indicado na Nota Explicativa (Anexo II ao AO90, na legislação portuguesa), a estipulação da norma quanto a compostos, locuções e encadeamentos vocabulares possa não ter sido, no essencial, alterada (o que é discutível), legitimam a interpretação da equipa do VOP os exemplos dados no AO90 (veja-se fim de semana, atestado com hífen no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves) e a tendência geral de interpretação (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, VOLP da Porto Editora, e fontes como as indicadas pelo consulente).
— Dada a impossibilidade de verificar a «consagração pelo uso» indicada na estipulação da norma (grandes divergências, heterogeneidade e assistematicidade em todas as fontes de referência — corpora, dicionários, vocabulários —, quer comparadas entre si, quer quando analisadas internamente, quer quando cotejadas com os exemplos do AO90), apenas se atestaram, como entradas preferenciais, as explicitamente mencionadas no texto legal, dando em todos os casos como alternativa não preferível variantes que seguem o princípio geral.