A construção apresentada não corresponde a um uso típico do verbo ser.
É possível identificar construções semelhantes em frases passivas, como (1):
(1) «O prémio foi-lhe atribuído por um júri literário.»
Nesta frase, o pronome lhe tem a função de complemento indireto e surge como argumento do verbo atribuir. O uso do pronome lhe justifica-se pelo facto de ser pedido por um verbo transitivo que se constrói com complemento direto e indireto: «atribuir alguma coisa a alguém».
Algumas construções similares surgem com adjetivo:
(2) «Ele foi-lhe fiel.»
Nesta situação, o pronome lhe corresponde à pronominalização do complemento do adjetivo, tal como se pode observar em (2a):
(2a) «Ele foi fiel à amiga.»
Ora, no caso apresentado, o adjetivo clemente não se constrói com complemento não preposicionado, pelo que o pronome lhe não parece ser admissível. Todavia, é possível uma construção como (3):
(3) «O Juiz foi clemente com o réu.»
Esta frase tem como equivalente a frase (3a), na qual está presente um pronome introduzido pela preposição regida pelo adjetivo:
(3a) «O Juiz foi clemente com ele.»
Não obstante o que ficou dito, é possível identificar esta mesma construção no seguinte excerto:
(4) «Namorado dessa Hélade convencional e literata dos livros e dos museus, foi-lhe clemente e não malvada a sorte [..].» (Alcântara Machado, Discurso de Recepção a Levi Carneiro)
A frase (4) mostra que, pelo menos para o português do Brasil, esta construção surge em alguns usos. Assim, embora não pareça estar descrita, poderá corresponder ao uso em que o pronome átono tem a possibilidade de substituir complementos oblíquos (ou adjuntos adverbiais), como acontece em:
(5) «Ralhou com ele.» / «Ralhou-lhe.»1
O mesmo uso poderá ser paralelo à frase apresentada pelo consulente:
(6) «O juiz foi clemente com o réu.» / «O juiz foi-lhe clemente.»
Disponha sempre!
1. Bechara descreve esta mesma possibilidade em Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, p. 151.