DÚVIDAS

«Filho da Igreja», «filho de Deus», «filho das ervas» e «filho das malvas»

Um familiar meu está a fazer um estudo em registos paroquiais do século XIX, e tem frequentemente encontrado a expressão «filhos da Igreja».

Quererá essa expressão significar «órfãos» ou «expostos da roda»?

Resposta

Não encontrámos nenhum registo, nas obras1 consultadas, da expressão «filhos da Igreja», mas de uma outra idêntica — «filho de Deus» —, identificada como alentejana2 (por Guilherme Augusto Simões, no seu Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, p. 325), cujo significado está relacionado com o valor dado pelo consulente à expressão sobre a qual nos apresenta a questão: «enjeitado», «filho exposto», ou seja, «aquele que foi abandonado pelos pais; aquele cuja paternidade se desconhece» e que era, habitualmente, recolhido pela Igreja (razão pela qual ficou também conhecida a expressão «colocado na roda», que recua a épocas remotas, em que o bebé era colocado numa roda que havia no exterior dos mosteiros/conventos).

É interessante notar as várias expressões populares usadas para designar o filho enjeitado, recusado pelo pais, evidenciando o abandono a que a criança é votada e a entrega a uma entidade superior (filho de Deus) e à natureza: «filho das ervas3», «filho das tristes ervas», «filho das malvas» e «filho das ervas e neto das águas correntes».

1 Da bibliografia específica sobre as expressões correntes, populares e idiomáticas portuguesas: Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Ed. Notícias, 1998), de Orlando Neves; Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Dom Quixote, 2000, de Guilherme Augusto Simões; Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas (Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1990), de António Nogueira Santos.

2 Guilherme Augusto Simões indica como referência a obra Vocabulário Alentejano (1913), de António Tomás Pires.

3 Sobre esta expressão, Orlando Neves, no seu Dicionário de Expressões Correntes (p. 195-196), diz-nos o seguinte: «para se compreender esta expressão, é necessário recuar ao exercício da mais velha profissão do mundo, a prostituição, segundo dizem. Muitos nomes havia para se chamar às mulheres que a exerciam durante a Idade Média. Um deles era hervoeira (hoje grafado ervoeira depois que erva perdeu o h inicial). Naturalmente, a prostituta dessas eras recebia os clientes em qualquer lugar: em casa, no mato, sobre a erva. Constituía, de resto, ofensa dar-se tel nome a uma mulher, tanto que um documento encontrado em Tomar e datado de 1388 dizia: "E se Confrade chamar à Confrada hervoeira ou aleivosa ou ladra pague 5 soldos à Confraria."»

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