DÚVIDAS

Editoédito

No Dicionário Enciclopédico de Teologia, do Prof. Arnaldo Schüler (Editora da ULBRA, Canoas, 2002. p. 172), lemos, no verbete édito: «Ordem judicial tornada pública através de editais ou anúncios»; em edito, temos: «Paroxítono. Norma, lei, determinação oficial, decreto, ordem. P.ex.: Edito de Milão (q.v.). No direito romano, complexo de normas jurídicas.» A obra traz, como aponta a abreviatura q. v. (quod vide), o verbete "Edito de Milão".

Dicionários como o Caldas Aulete e o Priberam corroboram as diferenças conceituais apontadas para esses parônimos (não contemplam, todavia, o exemplo "Edito de Milão").

Minha dúvida reside sobre o assim chamado Edito de Milão. Além do compêndio de Schüler, sei que no meio eclesiástico (o "site" do Vaticano é um exemplo), é comum que se empregue o termo paroxítono para se referir ao decreto imperial que deu liberdade de culto a todos no Império Romano em 313, tornando, por conseguinte, o cristianismo uma religião lícita. A língua italiana também faz distinção (vide, p.ex., o Vocabolario Treccani on-line ou o Dizionario di Italiano on-line do Corriere della Sera) entre edito (pronúncia proparoxítona, com o mesmo sentido do nosso acentuado édito) e editto (pronúncia paroxítona, com o mesmo sentido da palavra portuguesa edito).

Gostaria, pois, de confirmar a grafia Edito de Milão (e não "Édito de Milão", como registram alguns textos, a meu ver erroneamente).

Agradeço, desde já, a gentileza da atenção.

Resposta

Parece tratar-se efetivamente de uma criação da língua portuguesa a existência de duas palavras divergentes que entroncam no mesmo vocábulo latino – edictum, «ordem, mandado (de pessoa particular); ordem, ordenação, regulamento; direito estabelecido por um edito; enunciado, exposição, elocução, enunciação» –, conforme se observa no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no qual se acrescenta que edictum vem «do radical de edictum, supino de edicĕre "dizer em voz alta, declarar, fazer saber"».

A mesma fonte sublinha ainda que édito é uma criação do meio forense de língua portuguesa, e que, historicamente, apenas a forma edito teria legitimidade histórica:

«[A]o longo do século XIX, criou-se uma dicotomia entre edito e édito; já Constâncio (1836) registra edicto ou edito 'ordem pública, edital' de édito 'ordem, mandado do rei ou de outra autoridade que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos'; Aulete (1881) segue essa diretriz, e parcialmente Cândido de Figueiredo, que só dicionariza édito na acepção de Constâncio; Bluteau, por sua vez, no século XVII, só registra editto ou edicto 'ordem de um príncipe, República, Magistrado declarada publicamente' e dá como correspondente em latim edictum, i, de edicĕre, apresentando algumas locuções comuns no português, como por exemplo pôr um edicto latim edictum ponere, edictum affigere; Morais (1877) praticamente elucida a questão, registrando édito ou edicto (latim edictum) substantivo masculino 'ordem, mandado do príncipe ou magistrado que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos', cita um exemplo de Vieira ''proceder por éditos a encartamento [s.c. condenação] contra a mulher, que peca a seu marido na lei do casamento'' e ainda cita Eufrosina: ''[...] se quereis escapar dos meus éditos'', e no mesmo artigo diz: ''Assim mesmo escrito se pronuncia com i agudo'' e mais adiante sentencia: ''Edicto e edictal são mais corretos e alguns até têm por erro o contrário, mas vulgarmente se escrevem sem c e no foro se diz édito para o chamamento dos ausentes''; o esp. édicto (1490) significa 'mandado, decreto publicado com autoridade do príncipe ou do magistrado em lugares públicos das cidades ou povoados e nos quais se dá notícia de alguma coisa para que seja do conhecimento de todos; escrito que se fixa nos 'estrados' dos juizados e tribunais e que em certas ocasiões se publica na imprensa oficial para conhecimento das pessoas interessadas nos autos em que não têm representantes ou cujo domicílio se desconhece'; no português, criou-se, portanto, artificialmente a dicotomia entre édito e edito prov. a partir do meio forense, mas que histórica e etimologicamente não se abona [...].»

Contudo, na atualidade, se comparamos o português com os castelhano, verifica-se que o dicionário da Real Academia Espanhola acolhe apenas edicto (paraxítona), não se encontrando uma forma como "édicto". No francês, também parece existir só uma palavra, édit. Já no italiano, conforme refere o consulente, existem editto (paroxítono), «decreto», e edito (proparoxítono), «editado» – cf. dicionário Treccani  –, mas não configurando exatamente a mesma diferença que se faz em português, uma vez que os vocábulos italianos têm usos e etimologias distintas.

O jurista e consultor do Ciberdúvidas Miguel Faria de Bastos: confirma o uso significativo de édito, que não se confunde com edito no discurso jurídico:

«Na prática dos tribunais portugueses, assim como no Direito processual português (o mesmo se diga, quanto aos países lusófonos pós-25 de Abril), o termo édito (palavra proparoxítona) tem exclusivamente o significado de «documento oficial que incorpora uma ordem ou aviso ou de um tribunal, emanado para ser tornado do conhecimento público, mediante afixação no átrio ou porta do tribunal ou no domicílio residencial ou sede societária ou associativa da entidade visada e/ou mediante publicação em jornal». Sinónimo de édito é o substantivo edital (por ex., edital para citação de réus incertos para os termos de uma ação judicial).

O termo edito (palavra paroxítona) aparece em dicionários e sítios net portugueses e brasileiros com o significado de diploma legislativo (parlamentar, presidencial, governamental, régio ou imperial). Na História do Direito Português, porém, não há conhecimento de diploma legislativo algum que tivesse recebido a designação de edito (palavra paroxítona).

Em relação à pergunta do consulente, sempre vi escrito, em textos de língua portuguesa, “Édito de Milão" (ou Mediolano – também registado como Édito da Tolerância). Este Diploma normativo, que  declarou confessionalmente  neutro o Império Romano  dando ao cristianismo (e às demais religiões) o estatuto de legitimidade, e, por via disso retirando ao paganismo o estatuto de religião oficial do império romano,  foi de facto um diploma legislativo coimperial (quase um tratado), uma  vez que foi assinado pelo tetrarca oriental do Império Romano, Licínio, e pelo tetrarca ocidental, Constantino.

Apesar de habituado a ver escrito “Édito de Milão” (com a palavra proparoxítona), inclino-me a aceitar que esta redação seja uma corruptela (por paronímia) do termo “Edito de Milão” (com a palavra paroxítona), sendo este último, portanto, o termo correto. Dou, portanto, razão ao consulente.»

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