Milhar é, de facto, um numeral colectivo, que, estando no singular, significa um conjunto com valor fixo: «mil». Mas a palavra milhar não é invariável. Ela suporta o plural, como pode ver-se em frases como «Venderam-se milhares de quilos de castanhas neste fim-de-semana».
Não há, do ponto de vista da gramática da língua portuguesa, como referi no texto Ainda a querela «centenas de milhar» ‘versus’ «centenas de milhares», qualquer razão gramatical que justifique a falta de concordância de milhar quando é antecedido por um outro numeral também ele plural. E nem o apelo ao uso matemático da expressão pode servir de justificação, pois a matemática não faz o mesmo, em situações idênticas, com milhão, igualmente um numeral colectivo. Diz-se, preferencialmente, dezenas de milhões e não «dezenas de milhão».
Importa, no entanto, em abono do rigor, dizer que, com toda a falta de lógica gramatical que a expressão «dezenas de milhar» possa ter, ela é utilizada há já muito tempo, para designar a posição, ou casa, que ocupa numa sequência de números. Transcrevo um pequeno texto do século XVI, extraído do ‘corpus’ da língua portuguesa disponível no Corpus do Português a que tive acesso recentemente:
«as vnidades de baxo das vnidades & as dezenas de baxo das dezenas. E os çẽtos de baxo dos çẽtos. & os miles de baxo dos milles. & as dezenas de milhar de baxo das dezenas de milhar. E as çẽtenas de milhar de baxo das çẽtenas de milhar. & os cõtos da baxo dos cõtos. E assi cada hû ẽ seu lugar como dito he», Gaspar Nicolau, Tratado d'Arysmetyca, 1559.
E a querela mantém-se, porque a língua é viva e solta, por muito que eu não goste de algumas das suas manifestações.
N.E – Sobre esta controvérsia cf. os Textos Relacionados.