Penso que é sempre possível interpretar o pronome se como reflexo.
Deixar + infinitivo formam não uma locução verbal constituída por auxiliar e verbo principal mas uma estrutura em que um verbo causativo selecciona uma oração completiva de infinitivo. À semelhança de ver, ouvir, sentir, verbos de percepção física, deixar, com fazer e mandar, que são «verbos que exprimem atuação ou ordenação», de acordo com Evanildo Bechara,1 têm como complemento uma oração não finita. O sujeito desta oração é realizado como complemento directo do verbo deixar:
(1) «O polícia deixou-o estacionar no passeio.»
A frase (1) é equivalente a uma estrutura frásica em que se insere uma oração finita:
(2) «O polícia deixou que ele estacionasse no passeio.»
Em (2), observa-se o uso de um verbo que não selecciona complemento directo, mas o sujeito de um verbo transitivo na voz activa evidencia o mesmo comportamento depois de deixar, como em (4):
(4) «O polícia deixou o automobilista enganá-lo»,
que é equivalente a:
(5) «O polícia deixou que o automobilista o enganasse.»
Acontece que, na voz passiva, o sujeito do verbo da oração completiva pode também "subir" até à oração mais alta, isto é, pode ser realizado como complemento directo de deixar; nesse caso, sendo o sujeito e o complemento de deixar correferentes, é o pronome reflexo se que realiza esse complemento:
(6) «O polícia deixou-se enganar pelo automobilista»,
que é parafraseável como:
(7) «O polícia deixou que ele fosse enganado pelo automobilista.»2
É de reparar, no entanto, que o verbo da completiva na voz passiva dá como resultado uma frase como (8), de aceitabilidade discutível:
(8) ? «O polícia deixou-se ser enganado.»
Apesar disso, é curioso observar que o infinitivo da completiva de deixar tem o mesmo comportamento que as construções a que João Peres Andrade e Telmo Móia (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, pág. 214) chamam passivas infinitivas, comentando-as do seguinte modo:
«Cremos que determinadas construções com formas verbais infinitivas (não acompanhadas do verbo auxiliar ser ou do clítico se) têm uma estrutura de tipo passivo, isto é, são construções em que o segundo argumento do verbo — argumento interno — está associado à posição de sujeito. Nas frases que se seguem, temos exemplos de algumas destas construções passivas, que designaremos por passivas infinitivas. Como já referimos, em geral, a nossa tradição gramatical não as tem em conta.
(725) Esta sala foi difícil de pintar.
(726) As salas a pintar são várias.
(727) Esta sala encontra-se ainda por pintar.
(728) Mandei-o vigiar por dois detectives.
As estruturas sublinhadas em (725)-(728) são diferentes entre si e encontram-se integradas em estruturas igualmente diversas. No entanto, pode-se defender que qualquer dessas estrutras sublinhadas é de tipo passivo, isto é, com a particularidade de o argumento interno dos predicadores — no caso, pintar e vigiar — não ocorrer como seu complemento directo e o argumento externo não ocorrer como seu sujeito.»
Parece-me este o caso de deixar: desde que o seu sujeito seja o mesmo que sujeito passivo da completiva, este torna-se o objecto directo do próprio verbo deixar mediante um pronome reflexo («deixou-se»), tendo a completiva um infinitivo activo de interpretação passiva («fitar» = «ser fitada»).
1Moderna Gramática Portuguesa.
2A frase pode ser ambígua, porquanto ele tanto pode estar em correferência com «o policía» como ver associado outro referente: «o polícia deixou que ele próprio fosse enganado pelo automobilista» vs. «o polícia deixou que o colega fosse enganado pelo automobilista.»