DÚVIDAS

Verbo de estado com valor perfetivo num poema de Álvaro de Campos

Estando a lecionar a alunos do 12.º ano o poema "Aniversário" de Álvaro de Campos, decidi elaborar uma ficha de trabalho para treinar o aspeto verbal e surgiram-me algumas dúvidas.

No excerto «O que eu fui de serões de meia-província», poderei considerar que está presente o valor aspetual iterativo, no sentido em que o sujeito lírico quer referir que vivenciou vários serões em família?

Quando afirma «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças», posso considerar o valor aspetual perfetivo (pela presença dos advérbios «já não»)?

Antecipadamente grata pela atenção dispensada.

Resposta

Relativamente ao verso transcrito em (1), julgo que será mais pertinente considerar que estamos perante um estado (aspeto lexical) com um valor aspetual gramatical perfetivo:

(1) «O que fui de serões de meia-província»

Com efeito, o poeta descreve neste verso um “eu” passado que já não corresponde ao “eu” presente, ou seja, ao seu estado atual.

No que respeita ao verso transcrito em (2), a oração subordinante, «já não sabia ter esperanças», veicula, com efeito, um valor aspetual gramatical perfetivo, uma vez que descreve uma situação apresentada como concluída:

(2) «Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.»

Não obstante, a análise aspetual deste verso será eventualmente mais rica se se considerar que em ambas as orações (subordinada e subordinante) se descrevem situações durativas em fases diferentes do seu processo: «vim a ter esperanças» é descrito com valor inceptivo (fase inicial); «já não sabia ter esperanças» é descrito com valor terminativo (fase final). Verifica-se, assim, um contraste entre duas situações que acabam por não poder coocorrer porque uma inicia quando outra já tinha terminado. Para esta interpretação é também importante considerar o valor temporal de anterioridade associado à oração subordinante.

Os valores aspetuais gramaticais associados às fases de descrição de uma situação não integram, contudo, os conteúdos gramaticais do ensino secundário, pelo que a análise proposta não poderá ter lugar em contexto não universitário. Por esta razão, a análise feita com recurso aos conhecimentos gramaticais que os alunos possuem poderá ser um pouco enviesada e incompleta do ponto de vista da interpretação do poema. Para além disso, será uma análise de alguma exigência que poderá não ser acessível aos alunos.

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