DÚVIDAS

Aposto, vírgulas e frase curta

Pedindo desculpas pela insistência, gostaria que me explicassem se na frase «Os trabalhadores ucranianos, mais qualificados, são menos bem remunerados» as vírgulas estão correctamente colocadas. A frase encontra-se aqui fora de contexto, mas julgo que a ideia original era, comparando as qualificações dos trabalhadores ucranianos com as dos trabalhadores portugueses, realçar a contradição de aqueles serem menos bem pagos, apesar das suas qualificações. Consultando professores de Português, obtive várias respostas que posso resumir do seguinte modo:

1) a utilização das vírgulas seria gramaticalmente incorrecta, por separar o substantivo do adjectivo ou da oração adjectiva;

2) apesar de não ser gramaticalmente incorrecta, seria preferível não utilizar as vírgulas, pois os sinais de pontuação deveriam ser empregados com parcimónia, não acrescentando aquelas nada à frase em causa (opinião de que discordo…).

Se em relação à primeira resposta não tenho os conhecimentos necessários para me pronunciar (parece-me ter lido algumas repostas contraditórias no Ciberdúvidas quanto a esta matéria), confesso que me sinto inclinado a discordar frontalmente da segunda. Quer parecer-me que se verifica, efectivamente, uma tendência para a simplificação dos textos escritos (talvez por influência da língua inglesa), com a redacção de frases mais curtas e com uma assinalável diminuição da utilização de vírgulas. Mas não revelará também essa tendência uma diminuição das competências linguísticas da nossa população escolarizada e o consequente empobrecimento da língua portuguesa?

Antecipadamente grato pela atenção.

Resposta

As vírgulas estão bem colocadas, se quiser indicar que a sequência que elas delimitam é um aposto ou uma expressão apositiva que legitima a seguinte interpretação: todos os trabalhadores ucranianos têm, no seu conjunto, um atributo que lhes é acessório — além de serem trabalhadores ucranianos, são mais qualificados que outros (os portugueses, por hipótese). A presença do particípio passado usado adjectivalmente permite ainda parafrasear tal aposto por uma relativa explicativa, destacada por vírgulas: «Os trabalhadores ucranianos, que são mais qualificados, são menos bem remunerados.»

Se as vírgulas forem omitidas, obtém-se uma sequência em que «mais qualificados» restringe o conjunto de indivíduos designados por «trabalhadores ucranianos», pretendendo-se com  ela referir apenas «os mais qualificados entre os trabalhadores ucranianos». Neste caso, temos o que na análise sintáctica tradicional se classifica como atributo, o qual pode ser parafraseado por uma oração relativa restritiva, que não é separada por vírgulas: «Os trabalhadores ucranianos que são mais qualificados são menos bem remunerados.»

Quanto à sua observação final, penso que a frase curta não é sinónimo de perigo para as competências linguísticas, se ela não puser em causa a coesão e a coerência texuais. Parece-me que no mundo anglo-saxão há a perspectiva de que a frase tem de contribuir para apoiar uma linha de argumentação (a célebre necessidade de «getting to the point»); e há, em relação às línguas românicas, a ideia — talvez mesmo o preconceito — de que nestas línguas a frase é longa, porque esquece a racionalidade da argumentação e prefere convencer emocionalmente pelo artifício retórico, que só obscurece o pensamento. Se isto é verdade, talvez possamos reconhecer que a frase mais curta pode favorecer a clareza da linguagem, desde que devidamente articulada, isto é, apoiada pelos mecanismos de coesão linguística. Mas não se espere que este modelo seja sempre viável em línguas em que, por razões históricas e estruturais, as frases podem incluir várias relações de coordenação e subordinação.

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