É uma situação herdada do latim, língua em que os numerais denotados pelos algarismos 1, 2 e 3 tinham variação em três géneros, masculino (m.), feminino (f.) e neutro (n.):
ūnus (m.), ūna (f.), ūnum (n.) – "um, uma"
duo (m.), duae (f.), duo (n.) – "dois, duas"
trēs (m. e f.), tria (n.) – "três"
Os numerais de 4 a 100 não tinham variação de género; mas, de 200 a 900, voltava a existir o contraste entre os três géneros (ex.: ducenti, ducentae, ducenta "duzentos/duzentas")1.
Nas línguas românicas, o masculino e o neutro dos numerais representados por 1 e 2 convergiram na mesma forma; quanto ao feminino, o tratamento pode variar de língua para língua. Assim:
– manteve-se o contraste entre masculino e feminino no numeral cardinal denotado pelo algarismo 1: um/uma (português); uno/una (castelhano); un/una (catalão); un/une (francês); uno/una (italiano); un/o (romeno);
– línguas bem próximas do português simplificaram os cardinais correspondentes a 2: dos (castelhano), deux (francês). Mas muitas outras, como o português (com o galego) mantiveram as formas de masculino e feminino: dois/duas (português; dous/duas em galego); dos/dues (catalão); doi/două (romeno);
– o numeral correspondente a 3 deixou de apresentar qualquer contraste: três (português); tres (castelhano, catalão); trois (francês); tre (italiano), trei (romeno).
Em conclusão, o contraste entre género masculino e feminino é marcado pelos numerais 1 e 2, com a série das centenas de 200 a 900 (duzentos/duzentas, trezentos/trezentas, quatrocentos/quatrocentas, etc.). Os outros numerais são uniformes, ou seja, dispõem de uma só forma para os dois géneros. Observe-se que, nesta última situação, não é hábito falar em neutro no quadro das terminologias gramaticais em vigor para a descrição do português.
1 Cf. Frederico Lourenço, Nova Gramática do Latim, Lisboa, Quetzal, 2019, pág. 369.