Penso que o problema focado pela consulente passa mais pela relação da escolarização com o acesso à cultura e o que hoje se chama cidadania nas sociedades contemporâneas. A crença na dificuldade do português está disseminada nos diferentes países lusófonos, em grande parte, porque há diferenças maiores ou menores, conforme os países, entre a norma-padrão e os dialectos e os sociolectos da maioria da população: acontece que muitas crianças e jovens, tendo ou não por língua materna um dialecto ou um sociolcto português, só em contexto escolar contactam com a norma-padrão; finda a escolaridade obrigatória, muitos ficarão com um conhecimento imperfeito das diferentes dimensões da língua, porque não activam nem desenvolvem competências em contextos (sociais ou mais especificamente laborais) que favoreçam o desenvolvimento pessoal, autonómo e responsável. Sabendo que vivemos em sociedades massificadas, nas quais se consagram direitos que são universais, como a educação, compreende-se que não é fácil conciliar critérios de exigência com critérios de sucesso, quando à partida os que aprendem falam modalidades linguísticas alheias a áreas de actividade e pensamento tradicionalmente veiculadas pela norma-padrão. Na verdade, o domínio da norma-padrão é também a senha de acesso a instâncias mais complexas de intervenção em sociedade.
Dado que estamos a falar da função em sociedade das variedades de uma língua, recomendo Norma e Variação (Lisboa, Editorial Caminho, 2007), da autoria de Esperança Cardeira e Maria Helena Mira Mateus, que, indo de certo modo ao encontro das reflexões da consulente, traçam o seguinte quadro da situação da norma-padrão no Brasil (pág. 40):
«Tardio, débil, o ensino da língua no Brasil não conseguiu ainda colmatar o fosso entre a língua de uma população forjada na escravatura e na miscigenação e a de uma elite escolarizada segundo padrões porventura demasiadamente colados aos europeus. Assim, um aluno que entra no sistema de de ensino brasileiro (note-se que norma-padrão ainda é, no Brasil, um bem cultural inacessível a grande parte da população) e que tem de adquirir um padrão escrito encontrar-se-á numa situação de "quase diglossia" e a língua parecer-lhe-á muito distante daquela que conhece.
«A estratificação da sociedade criou uma separação linguística: desde as variedades rurais, geograficamente isoladas, faladas por pessoas de pouca ou nenhuma escolarização, até à variedade urbana culta, o português do Brasil consubstancia um verdadeiro contínuo linguístico, bastante diferente da unidade (relativa) que encontramos em Portugal. Enquanto em Portugal as diferenças regionais e sociais não são muito profundas, não dificultando significativamente a comunicação, e a norma culta e a norma-padrão não se afastam muito, no Brasil as diferenças sociais e os seus correlatos linguísticos são mais marcados. E quando falamos de norma culta brasileira devemos utilizar o plural, uma vez que à norma culta do Rio de Janeiro têm vindo a juntar-se as de São Paulo, Recife, Porto Alegre e Salvador.»
Esta visão da situação linguística brasileira, salienta, pois, a distância considerável entre as modalidades linguísticas usadas pelo grosso da população e a norma-padrão, que é difícil, justamente porque impõe a aprendizagem de estruturas e preceitos ausentes nessas variedades mais generalizadas. No entanto, quanto a mim, não me parece que esta situação não exista em Portugal, porque dificuldades talvez não tão distintas das dos falantes brasileiros podem ser dete{#c|}tadas mesmo em alunos que falam português como língua materna.