DÚVIDAS

A expressão «pois se»

«Consultei os mais renomados colegas (evidentemente, sem entrar em detalhes sobre a minha particular proximidade com a paciente); estes elegantemente procuraram disfarçar sua descrença na veracidade da minha descrição daquelas anormalidades psíquicas, chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; era de esperar, pois se eu mesmo, o maior de todos eles, ainda duvidava...»

Gostaria de saber se, no período acima, a expressão «pois se» está correta. Se está, como se classificaria tal locução conjuntiva?

Obrigado.

Resposta

A sequência está correcta e é utilizada, pelo menos, desde Eça de Queirós, como poderemos verificar no seguinte exemplo, extraído do Corpus do Português:

«O primo não imagina como anda a Feitosa. A ordem, o asseio, a regularidade, a disciplina.. Ela olha por tudo, até pela adega, até pela cocheira! Gonçalo esfregou radiantemente as mãos – Pois se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento, hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires»

Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires

O que não quer dizer que deva ser entendida como um bloco, ou uma locução.

O Dicionário Houaiss aponta diversos valores para a palavra pois. Considera-a conjunção coordenativa com valores de explicação, conclusão e adversidade, e advérbio. Enquanto advérbio, atribui-lhe valores de concordância, dúvida, confirmação. Diz ainda que se trata de um vocábulo que pode, e cito, «variar de posição conforme o ritmo, a entoação, a ênfase que se queira dar a determinada unidade de sentido».

Abrindo um parêntesis, poderíamos dizer que é esta plasticidade do vocábulo pois que leva alguns a negar-lhe o valor de conjunção típica.

Analisemos, antes de mais, a frase que numero como (1) extraída do texto de Eça de Queirós e separemos a sequência pois se:

(1) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Pois se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento, hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

(1.1) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Pois hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires, se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento.»

(1.2) (?) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento, (*)pois hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

(1.3) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento, hei-de gritar, pois, por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

(1.4) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento, gritarei, pois, por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

(1.5) «Gonçalo esfregou radiantemente as mãos — Se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

Se tivermos em conta (1.5), poderemos dizer que pois não é uma conjunção, dado que a relação entre as orações se não altera, com a sua queda. Perde um pouco de ênfase, é certo, mas não se altera a relação entre as duas orações, que é, parece-me, a seguinte:

Oração subordinante

(que engloba uma subordinada substantiva) — «hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

Oração subordinada adverbial

condicional — «hei-de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa dos Ramires.»

Por outro lado, sendo habitualmente, e enquanto conjunção, considerada coordenativa, pois não poderia ocorrer em frases como (1.1), dando origem a um enunciado correcto, como é o caso.

Creio que, aqui, pois é um advérbio com um valor próximo da confirmação e que tem na frase um valor enfático indubitável.

Será que acontece o mesmo na frase que submete à nossa apreciação? Manipulemos e vejamos, tendo, desde já em conta, que a frase, pela pontuação final, parece ficar em suspenso:

(2) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; era de esperar, pois se eu mesmo ainda duvidava...»

(2.1) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; pois se eu mesmo ainda duvidava, era de esperar...»

 (2.2) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; pois era de esperar, se eu mesmo ainda duvidava...»

(2.3) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; se eu mesmo ainda duvidava, (*)pois era de esperar…»

(2.4) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; se eu mesmo ainda duvidava, era, pois, de esperar...»

 (2.5) «… chegaram mesmo a me olhar com desconfiança; era de esperar, se eu mesmo ainda duvidava...»

Parece-me que o valor de pois na frase em apreço se aproxima do que identifiquei na frase de Eça de Queirós, com a vantagem de manter, pelo facto de a frase terminar com reticências, uma maior ênfase.

Podemos, pois, concluir que, sendo embora frequente o uso sequencial de pois se, tal não implica que se trate de uma locução, mantendo se o valor conjuncional subordinativo condicional (se for esse o caso, como é aqui…) e sendo pois, em construções deste tipo, um advérbio, cujo valor é enfático e de confirmação.

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