O contraste entre pude e pode não é da mesma ordem que o existente entre recepção e receção.
Sobre o caso de recepção/receção, há respostas anteriores.
Sobre o contraste entre formas da flexão do verbo poder, diga-se que a abertura do timbre da vogal temática e, do tema do pretérito perfeito, é uma característica dos verbos irregulares da 2.ª conjugação (e de estar e dar, da 1.ª conjugação). Trata-se de uma particularidade bastante antiga, porque ocorre também em galego, com o qual o português tem uma história comum até ao século XIV. Justifica-se, pois, transcrever sobre este assunto o que diz Manuel Ferreiro, em Gramática Histórica Galega (Edicións Laiovento, 1996, 310):
«[...] [A]ctualmente os paradigmas verbais apresentan na VT [vogal temática] dos tempos do Pretérito a oposición [é] nos verbos regulares, fronte a [έ] nos irregulares. A razón residirá na nivelación da VT nos verbos regulares a partir de formas maioritarias con [é] dos tempos do tema de presente, fronte aos verbos irregulares con pretérito forte, en que se mantivo a diferenza fonética na VT polo afastamento formal entre o tema de presente e de pretérito.»
É certo que, pelo menos, no português de Portugal, a vogal do radical de certas formas do presente e do pretérito perfeito do verbo poder (aquelas em que essa vogal não recebe acento tónico) é hoje foneticamente a mesma (não parece sê-lo fonologicamente). Confronte-se, por exemplo, podemos e pudemos, cujas primeiras sílabas são homófonas, tendo ambas [u]. Mas não se deve pensar que, nestes casos, os grafemas o e u funcionam diacriticamente, como se fossem o p e o c mudos de recepção e director, os quais, no contexto da relação das regras do acordo ortográfico de 1945 com a pronúncia-padrão de Portugal, têm, em princípio, a função de indicar a abertura da vogal átona que os precede. No caso de podemos e pudemos, sabemos que, tanto num plano mais abstrato (fonológico) como na perspetiva histórica, as vogais do respetivos radicais têm timbres diferentes: o o do podemos é aberto sempre que a sílaba do radical (pode-) recebe acento tónico (podes, podes); o u de pudemos ocorre como u em pude («eu pus»).1 A alternância o/u não é, portanto, um simples dispositivo gráfico tendente a indicar os dois timbres diferentes que o e tem nos temas verbais do presente (pode-) e do pretérito perfeito (pude-).
1 Poderia argumentar-se que, no pretérito perfeito, a vogal do radical não é u, mas o, supondo que a forma da 3.ª pessoa do singular pôde se teria generalizado a todo o paradigma, exceto à 1.ª pessoa do singular; nesse caso, em vez de pudeste, pudemos, pudestes e puderam, a grafia seria "podeste", "podemos", "podestes", "poderam" (formas incorretas à luz da atual ortografia, mas atestadas em documentos medievais). Contudo, supõe-se que, no pretérito perfeito do indicativo de poder, o radical tem uma vogal alta (mas recuada), que é u, tal como acontece em verbos como fazer ou ter, os quais têm também uma vogal alta (mas não recuada), que é i, em quase todo o paradigma do pretérito perfeito, exceto na 3.ª pessoa do singular: fiz, fizeste, fez, fizemos, fizestes, fizeram; tive, teve, tiveste, tivemos, tivestes, tiveram. Ou seja, no pretérito perfeito do indicativo dos verbos irregulares que foram mencionados, a flexão parece dar lugar só para vogais altas (u e i), exceto na 3.ª pessoa do singular.