Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora
Quatro lados e... nenhum acento!
Mais um descuido no concurso Joker

Mais uma  chamada de atenção ao concurso Joker, no primeiro canal da televisão pública portuguesa. O descuido, desta vez, tem que ver com o acento (errado) no substantivo trapezóide.

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação ao uso dos relativos que e quem. Normalmente se costuma dizer que quem se usa para pessoas.

A minha dúvida é, por exemplo, na seguinte frase: «O homem de quem te falei é o meu pai.» Seria correto dizer «o homem de que te falei é o meu pai»? É sempre possível utilizar que nos contextos em que normalmente se usa que?

Muito obrigada!

Resposta:

Na oração apresentada – «o homem de que te falei é o meu pai» –  é possível usar os dois pronomes relativos, ou seja, seria igualmente correto «o homem de quem te falei é o meu pai», isto porque ambos os pronomes relativos que e quem podem referir-se a pessoas e a seres ou coisas personificadas e podem ser sujeito de oração.

O mais comum é termos o relativo que porque, como refere a Nova Gramática do Português Contemporâneo «que é o pronome relativo básico. Usa-se com referência a pessoas ou coisas, no singular ou no plural, e pode iniciar orações adjetivas restritivas e explicativas» (Cunha e Cintra, 2002, pág. 346). No entanto, o facto de quemse empregar com referência a pessoas ou a alguma coisa personificada leva a que os falantes optem por ele em detrimento de que. Com efeito, no exemplo apresentado temos um constituinte preposicionado «de que/quem», caso em que os falantes têm preferência por «pronomes relativos semanticamente ou morfologicamente mais ricos» (E. B. P. Raposo et al. 2013. Gramática do Português, Lisboa, F. Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2083), como é o caso de quem. Não obstante, e como referido, o relativo que pode «ocorrer num constituinte relativo preposicionado com a função de complemento indireto» (ibidem).

Pergunta:

Deve escrever-se «manga pagode», «manga-pagode», «manga de pagode», «manga à pagode»?

Resposta:

Há duas grafias possíveis: manga pagode manga-pagode (manga de camisolas/vestidos, influenciada pela moda egípcia e que se caracteriza por ser mais aberta na base do que no ombro). Apesar de as consultas levadas a cabo na Internet demonstrarem que geralmente não ocorre a hifenização nesta construção, formada por dois substantivos como outras expressões semelhantes – «manga balão», «manga quimono» –, afigura-se preferível o uso do hífen neste tipo de compostos. Veja-se o que se diz na base XVI do Acordo Ortográfico de 19901.

«Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição cujos elementos, de natureza nominal [...] constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio [...]: ano-luz, arcebispo-bispo, arco-íris, decreto-lei, [...] médico-cirurgião, rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô, turma-piloto [...]» .

Ora, no caso em apreço, estamos perante dois elementos de «natureza nominal» – manga e pagode –, que constituem uma unidade sintagmática e semântica, pelo que será de prever o uso do hífen: manga-pagode.

1 Cf. também a base XXVIII do Acordo Ortográfico de 1945, que esteve plenamente vigente em Portugal até 2009.

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo explorar no sentido de «pesquisar; investigar» tem a mesma raiz que explorar no sentido de «usar outrem ou algo para auferir algum benefício».

Resposta:

O verbo explorar, atestado com o significado de «percorrer (região, território, etc.) para estudar, pesquisar, conhecer; observar (região) em missão militar ou comercial; efetuar estudos, examinar, analisar; efetuar descobertas, tornar conhecido; descobrir, revelar; submeter (algo) a teste(s), experimentar; extrair lucro, compensação material de; vender a preço muito alto e injusto; induzir (alguém) ao engano, ao erro, para obter vantagens, iludir, ludibriar; tirar proveito de, beneficiar-se» (Dicionário Houaiss), tem origem no latim explōro,as,āvi,ātum,āre, que significava «observar, examinar, explorar, apalpar, verificar, experimentar, tentar».

Estamos perante um verbo polissémico que, além do significado central, com origem no latim, adquiriu outros significados ao longo do tempo, nomeadamente o de «usar outrem ou algo para auferir algum benefício». Entre outros motivos, este fenómeno deve-se muito à criatividade linguística, que por efeitos de metáfora e metonímia, acaba por alargar o uso de palavras a outras aceções antes inexistentes nas suas definições.  

<i>Black Friday</i>, um duplo contrassenso
O «expoente máximo e negativo de uma sociedade capitalista» importado também no nome do original inglês

A propósito de mais um dia de grandes descontos no comércio e a corrida ao mais desbragado consumismo desse «expoente máximo e negativo de uma sociedade capitalista», como  chamou ministro do Ambiente e Ação Climática português João Matos Fernandes, cabe lembrar a razão do termo Black Friday. E, já agora, se estamos num país de língua portuguesa, porque não chamar-lhe «Sexta-Feira Negra»?