Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Questiono-me quanto à diferença efetiva entre mostrar e demonstrar?

Por exemplo, o verbo demonstrar na frase «O Cavaleiro demonstra-se resiliente», o verbo demonstrar não me parece aceitável, por não poder ser reflexivo. Logo, a forma correta seria «O Cavaleiro mostra-se resiliente».

No entanto, na frase «O Cavaleiro demonstra resiliência», o verbo já me parece aceitável. Por outro lado, os dicionários apresentam definições que apontam para ambos serem sinónimos um do outro. Assim sendo, como posso explicar de forma coerente e clara a diferença entre os dois verbos?

Muito grata

Resposta:

Na verdade, o verbo demonstrar pode ser pronominal, registado com o significado de «dar-se a conhecer; mostrar-se» (Infopédia)1. Por essa razão, ao enunciar-se a frase «O cavaleiro demonstra-se resiliente» não se incorre em erro. Neste caso o que se pretende dizer é que o cavaleiro evidencia uma dada qualidade, a da sua resiliência através de ações ou comportamentos.

Por outro lado, também podemos ter «o cavaleiro mostra-se resiliente». Não podemos, no entanto, afirmar que são frases cem por cento sinónimas na medida em que se sugere apenas que o cavaleiro apenas manifesta ou revela a qualidade de ser resiliente, sem a característica de evidência ou clareza adicional sugerida por demonstrar-se .

Já na frase «O cavaleiro demonstra resiliência», o verbo demonstrar é usado no sentido de «fazer ver, mostrar» essa característica. Aqui, não se trata de um reflexo interno (como no pronominal demonstra-se), mas de uma ação que evidencia a resiliência por meio de comportamentos ou atitudes concretas. A frase enfatiza o processo de mostrar algo com clareza e fundamento, destacando o caráter de prova ou evidência implícito em demonstrar. Neste caso, mostrar seguido de nome é também possível, praticamente com o mesmo significado, muito próximo de manifestar, mais uma vez sem a ênfase associada a demonstrar.

1 O uso de demonstrar-se associado a um adjetivo com a função de predicativo do sujeito está abonado pelo Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (coordenado por ...

Pergunta:

Qual é a diferença na gramática portuguesa entre os termos «frase» e «oração»? Será o «sintagma» também uma denominação da gramática ou da liguística e qual é a sua diferença relativamente aos outros dois termos?

Obrigado.

Resposta:

Na gramática portuguesa, os termos frase, oração e sintagma têm significados distintos, mas estão interligados na construção do discurso.

De acordo com o Dicionário Terminológico, uma frase é um «enunciado em que se estabelece uma relação de predicação, contendo, no mínimo, um verbo principal, podendo ainda incluir elementos como o sujeito, complementos seleccionados, predicativos e eventuais modificadores». Por exemplo, na frase:

(1) «O gato dorme tranquilo» (frase simples).

Aqui temos um verbo principal – dorme  e outros elementos que completam o sentido. A frase é, portanto, uma unidade maior de comunicação, que transmite uma ideia completa.

Já a oração, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, é uma «unidade sintática, composta por um predicado e por um sujeito, realizado ou não foneticamente, articulados entre si». Ou seja, uma oração contém sempre um predicado e expressa uma ação ou estado. Na frase «O gato dorme tranquilo», temos uma única oração. No entanto, quando há mais do que um predicado, estamos diante de uma frase complexa, que contém duas orações:

(2) «O João estudou muito porque queria passar no exame.»

Em (1) a primeira oração é «O João estudou muito», com sujeito, «O João», e predicado, «estudou muito».

A segunda oração é «porque queria passar no exame», que é subordinada adverbial causal, explicando o motivo pelo qual o João estudou. Esta oração também conta com um sujeito implícito, «ele» (que se refere a «o João») e um predicado, «queria passar no exame».

...

Futebol e erros que saem caros
Uma tradução duvidosa

O mundo do desporto e, em pasrticula o do futebol,  é terreno fértil para deslizes, até linguísticos. Neste texto, a consultora Sara Mourato dá conta de uso lexical que é bem capaz de ser o resultado uma mal conseguida tradução (automática?) do inglês. 

Pergunta:

Em todas as consultas que fiz, realidade e verdade são sinónimos. Posso construir a frase: «a verdadeira realidade não é percetível pelos sentidos do ser humano», ou estou a incorrer numa redundância?

O Ciberdúvidas continua um trabalho de excelência.

Obrigado.

Resposta:

Não há redundância na frase «a verdadeira realidade não é percetível pelos sentidos do ser humano». A verdade é que, embora realidade e verdade possam ser sinónimos em certos contextos, como na aceção de verdade enquanto «os factos tal como aconteceram ou se conhecem» (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa), as definições dos dois nomes demonstram que se podem distinguir:

(1) Realidade refere-se àquilo que existe de facto, ao mundo tal como é, independentemente da interpretação humana;

(2) Verdade, por sua vez, tem um caráter mais subjetivo, representando a adequação entre o que se pensa, diz, ou representa, e a realidade objetiva.

No caso em questão, importa analisar o adjetivo verdadeiro/a. De acordo com o mesmo dicionário, pode significar aquilo que é conforme à verdade, autêntico, real, ou mesmo aquilo que é natural ou não fingido.

Por essa razão, na frase apresentada, o adjetivo verdadeira qualifica realidade para sublinhar a ideia de que há uma dimensão da realidade que vai além do que é imediato ou sensível, indicando um nível mais profundo.

Portanto, não se trata de redundância, mas de um uso legítimo e estilisticamente eficaz para enfatizar a distinção entre a perceção superficial e uma suposta realidade mais profunda/autêntica.

Pergunta:

Gostava de agradecer o vosso trabalho. Tem sido muito esclarecedor para os seguidores do Ciberduvidas. Muito obrigada!

Deixo aqui uma frase de uma amiga que me gerou dúvidas: «... não sei se é para fazer a cirurgia às cataratas.» A minha dúvida está em «às cataratas». Eu diria das cataratas. Qual é a correta?

Obrigada pela vossa atenção e pelo vosso trabalho!

Resposta:

A frase correta e corrente é com a preposição a, i.e.: «Não sei se é para fazer a cirurgia às cataratas». 

Neste contexto, o verbo fazer pede a preposição a para introduzir o objetivo ou destino da ação:

(1) «Fazer às cataratas a cirurgia.»

Para compreender melhor, podemos substituir «fazer a cirurgia» por um verbo equivalente como operar. Veja-se:

(2) «Não sei se é para me operarem às cataratas.»

Esta construção afigura-se mais natural e reforça o uso correto da preposição a.

No entanto, não configura erro usar a expressão «cirurgia das cataratas», na qual a preposição de implicaria posse ou origem, ou seja, algo como «a cirurgia pertencente às cataratas». Aceitando que operação e cirurgia são sinónimos e que o segundo termo tem um funcionamento sintático ao primeiro, importa assinalar que uma consulta da secção histórica do Corpus do Português (Mark Davies) revela que, em textos do Brasil, operação tem frequentemente associada a preposição de, quando se faz referência ao órgão, a parte do corpo ou afeção sujeitos a operação: «cirurgia de coração», «cirurgia de próstata», «cirurgia de hérnia de disco», «cirurgia de catarata». Este uso parece ausente dos textos de Portugal (ibidem).