Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a forma correta: ritmação ou ritmização?

Resposta:

Ambos os substantivos – ritmação e ritmização – estão corretos e têm o mesmo significado: «ação de imprimir ritmo a, submeter a ritmo; cadenciar; marcar o ritmo; acompanhar». As suas diferentes terminações estão relacionadas com os verbo dos quais derivam: ritmação deriva de ritmar e ritmização deriva de ritmizar – verbos sinónimos.

Estes substantivos são formados por sufixação de -ção ao tema do verbo, formando assim um substantivo. A este sufixo é atríbuido o sentido de «ação ou resultado dela».

Pergunta:

É correto terminar uma frase com «lidar com»?

Exemplo: «Quanto à falta de pontualidade, tenho dificuldade em lidar com»

Na minha opinião a frase poderia ser «Quanto à falta de pontualidade, é algo com que tenho dificuldade em lidar» ou «Tenho dificuldade em lidar com a falta de pontualidade».

Fiz este reparo à minha filha que me respondeu que todos os amigos falam assim e que a frase está correta.

Resposta:

A construção «quanto à falta de pontualidade, tenho dificuldade em lidar com», com a frase a terminar numa preposição, é uma novidade que parece refletir uma situação de empréstimo sintático do inglês.

Em inglês é comum encontrar-se frases como «This exercise is too difficult to deal with», isto é, terminando em preposição – with. Trata-se de um fenómeno denominado «dangling/hanging/stranded preposition» – «preposição pendente» , que, apesar de começar a ter registo em português, na oralidade, não tem fundamentação nas gramáticas. Antes pelo contrário, na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian lê-se que, com verbos com regência, em português, não é possível separar a preposição do núcleo desse complemento (pág. 2071).

Note-se ainda que este tipo de contruções é corrente em língua inglesa e ocorre em diversas situações, já em português percebe-se que o seu uso se dá somente quando a preposição em final de frase retoma informação da frase anterior. Veja-se os exemplos:

(1) «Trust me, I know what I‘m talking about.»

 Esta contrução, em inglês, com a preposição em final de fase (1) é um exemplo de que não ocorreria em português (2):

(2) «*Acredita em mim, eu sei que falo sobre.»

Como não há retoma de informação, a frase (2) é inaceitável, aceitável seria:

(3) «Confie em mim, eu sei sobre o/do que estou a falar.»

 

* assinala a inaceitabilidade da frase.

Pergunta:

É correto escrever: «Ela desabafou sobre suas mágoas»?

Resposta:

A frase «ela desabafou sobre as suas mágoas» é aceitável, atendendo a que «sobre as suas mágoas» é um adjunto adverbial (modificador do grupo verbal) referente ao motivo ou ao conteúdo da ação de desabafar.

Nas aceções de confidenciar1 e abrir-se2, o verbo desabafar pode ser transitivo direto e indireto, ocorrendo com a preposição com3

(1) «desabafou as preocupações com o pai» (transitivo direto e indireto). 

(2) «ele desabafa sempre com a irmã» (transitivo indireto);

(3) «consegui que ela desabafasse comigo» (transitivo indireto).

Os usos ilustrados em (2) e (3) não são incompatíveis com uma expressão que marque a motivação do ato de desabafar e que seja introduzida pela preposição sobre ou outra equivalente, incluindo locuções prepositivas (p. ex. «a respeito de»):

(4) «ele desabafa sempre com a irmã sobre os seus problemas.»

(5) «consegui que ela desabafasse comigo a respeito das suas mágoas».

Note-se que o substantivo desabafo tem ocorrência com a preposição sobre, e pode considerar-se que este é um dos casos em que a nominalização conserva as propriedades do verbo com que se relaciona. Veja-se um exemplo:

(6)  «Desde que se calara - quando, a seguir ao desabafo sobre a filha, alastrou, do Café para as casas mais distantes, aquela espécie de velhacaria com que, a um tempo, se exibia e se ocultava, como tesouro de avarento envaidecido, o corpinho tão pouco real de Natalina.» (

Pergunta:

Tenho vindo a notar que em muitas embalagens e placas informativas, principalmente no ramo da alimentação, têm vindo a usar muito o singular das palavras, como por exemplo: «tarte de noz.». Esta seria talvez, confecionada com mais do que apenas uma noz.

Qual seria o mais correto: «tarte de noz» ou tarte de nozes» ou «tarte com aroma a noz»? Porque temos uma outra situação relacionada com os sabores e aromas.

Normalmente dizemos: «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana», e por aí além, mas existe alguma regra no que diz respeito às quantidades, para definir se o nome é no singular ou no plural?

Obrigado.

Resposta:

Designar a tarte como «tarte de noz», com noz no singular, está correto, assim como está «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana», etc.

Noz, laranja, maçã, banana são nomes comuns contáveis, ou seja, pluralizáveis. No entanto, é possível usar nomes contáveis como não-contáveis, como acontece no caso de «bolo de noz», «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana».

De facto, fazendo parte da lista de ingredientes de uma receita, estes nomes comuns passam a pertencer à classe dos nomes não-contáveis, i.e., são «nomes comuns que se aplicam a conjuntos de objetos ou entidades em que não é possível distinguir partes singulares de partes plurais» (Dicionário Terminológico).

Vejam-se dois exemplos flagrantes: «sumo de laranja» e «puré de batata». Nunca se diz «quero um sumo de laranjas» e «o frango acompanha com puré de batatas». Contudo, sabe-se que, à partida, sumo em referência foi feito com mais do que uma laranja e o puré tem, inegavelmente, mais do que uma batata.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a diferença entre «cerca de» e «por volta de», que me parecem idênticos. Seria melhor se colocasse alguns exemplos.

Obrigada!

Resposta:

As locuções «cerca de» e «por volta de» podem ser sinónimas se significarem «quase, aproximadamente»:

(1) «Havia por volta de mil pessoas na festa» = «Havia cerca de mil pessoas na festa»;

(2) «Chegou por volta das 8h» = «Chegou cerca das 8h»;

(3) «Emagreceu por volta de 4 quilos» = «Emagreceu cerca de 4 quilos».

Por outro lado, quando «cerca de» significa «junto a, perto de, nas proximidades», então já não é sinónimo de «por volta de»:

(4) «Um ajuntamento de crianças famintas estavam cerca da mesa» = «Um ajuntamento de crianças famintas estavam perto/junto da mesa»;

(5) «A minha casa é cerca do cinema» = «A minha casa é perto/junto do cinema».

Nota, contudo, para referir que é muito menos frequente o uso de «cerca de» com valor locativo, ainda assim, encontra-se atestado em textos literários:

« [...] fez sinal a um homem que estava cerca do alpendre e mandou-o, falando-lhe a meia voz, vigiar o atalho.» (Castro Soromenho. Terra Morta: Romancein Corpus do Português)

«Mas cerca dali, no montado do P.e Francisco, a vagem das giestas estalava, e era uma chieira contínua como de incêndio a triturar» (Manuel RibeiroA Planície Heróicain Corpus do Português).