Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
69K

Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O «conhece-te a ti mesmo» está correto e não implica em redundância, certo?

Obrigado.

Resposta:

Não ocorre nenhuma redundância quando enunciamos «conhece-te a ti mesmo».

A estrutura «a ti mesmo» dá ênfase à mensagem transmitida pelo verbo reflexivo. Celso CunhaLindley Cintra referem, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 300), que as formas tónicas de pronome pessoal (mim, ti) regidas da preposição a se usam, «acompanhando um pronome átono [clítico], para ressaltar o objeto/complemento».

Se por ventura causar estranheza a colocação do clítico, é de reforçar que conhecer é um verbo pronominal nas aceções de «encontrar-se pela primeira vez» e «saber julgar-se ou avaliar-se» (Infopédia).

Pergunta:

Pode dizer-se desregulatória?

Obrigado.

Resposta:

Aquilo que encontramos atestado é, como adjetivo e nome masculino, desregulador/a: «que ou o que desregula ou tem por função desregular» (Priberam). O sufixo -(d)or é usado como agente, instrumento da ação. 

Por outro lado, encontramos atestado o oposto de desregulatória, i.e., regulatório (Ibidem). Por isso mesmo, não há como não aceitar a forma desregulatória. Note-se que o sufixo -tório/a é usado com o sentido de lugar e, à semelhança de -(d)or, instrumento da ação (Cunha, Celso, Cintra, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo). Portanto, as duas formas estão corretas, sendo que significam o mesmo. À sua semelhança, por exemplo, encontram-se atestados outros substantivos formados com os sufixos -(d)or -tório, como são caso inibidor e inibitória

Pergunta:

Como fica esta frase na passiva: «O João costuma ler as revistas»?

 Obrigada

Resposta:

A frase na voz passiva correspondente a «O João costuma ler as revistas» é «As revistas costumam ser lidas pelo João».

O que aqui acontece é que, na voz ativa, temos o núcleo verbal preenchido por uma perífrase verbal composta pelo verbo costumar seguido do verbo pleno ler, na alternativa passiva, a perífrase verbal, desde que se mantenha a sinonimía, é: verbo auxiliar da voz ativa [costumam] + verbo auxiliar da voz passiva [ser] + particípio passado do verbo pleno [lidas]. 

Neste caso, o verbo costumar não intervém na seleção dos argumentos nem altera os valores semânticos que o verbo pleno lhe atribui, daí, manter-se na frase da voz passiva.

Pergunta:

Escrevo-lhes porque gostaria de saber qual é a diferença entre «passar-me de todo» («esquecer-me de alguma coisa por completo») e «passar-me de tudo».

Porque não seria neste caso «passar-me de tudo»? 

Resposta:

De facto, tudo indica a totalidade, o conjunto das coisas, daí a consulente considerar que «passar-se de tudo» seria uma expressão aceitável, sendo sinónima de «esquecer-se completamente/totalmente de algo» (completamente e totalmente são advérbios que compartilham relação de sinonímia).

No entanto, «de tudo» é uma expressão com valor partitivo, i.e., é uma construção que indica a relação parcial ou total com um todo: «comeu de tudo», «viu de tudo», «comprou de tudo» (em espanhol o que ocorre é «lo hay de todo» quando, em português, temos «há de tudo»).

Por outro lado, o que se encontra atestado nos dicionários é a locução «de todo» como sinónima de completamente, totalmente (ou ainda «de maneira nenhuma» – exemplo: «não estou de todo disponível para esta conversa»– Priberam). Assim, a expressão corrente é «passar-me de todo». 

Note-se que, além de significar «esquecer-me completamente», «passar-me de todo» significa também «ficar extremamente irritado ou chateado, a ponto de agir de modo irracional». 

Deixa-se ainda outra nota para a expressão, com significado díspar, que é «andar/estar de todo». Aqui, o seu significado é «andar ou estar particularmente insuportável; andar ou estar muito cansado» (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa).

Pergunta:

Os pronomes pessoais do caso oblíquo átono não vêm precedidos de preposição, os pronomes lhe e lhes são átonos, porém eles podem ser usados como objeto indireto que vem precedido de preposição.

Não entendi isso.

Vocês poderiam me ajudar?

Obrigado.

Resposta:

Os pronomes pessoais oblíquos átonos não vêm precedidos de preposição, como se pode ver nos exemplos:

(1) «Ela nos viu no cinema» / «Ela viu-nos no cinema» – nos exerce a função de objeto/complemento direto, na frase;

(2) «Ela nos explicou a importância do projeto» / «Ela explicou-nos a importância do projeto» – nos exerce a função de objeto/complemento indireto, na frase. 

(3) «A criança o deu [o brinquedo] à mãe» / «A criança deu-o [o brinquedo] à mãe» – o exerce a função de objeto/complemento direto, na frase. 

O mesmo acontece com os pronomes lhelhes, i.e., não vêm precedidos de preposição quando exercem a função de objeto/complemento indireto. Veja-se:

(4) «A criança lhe deu o brinquedo» / «A criança deu-lhe o brinquedo». 

O que acontece, sim, é que o lhe ou lhes  substituem o objeto/complemento de um verbo transitivo indireto que é, aqui sim, precedido de preposição, nomeadamente a ou para, e o mesmo sucede com todos os pronomes pessoais do objeto/complemento indireto:

(5) «A criança deu o brinquedo à mãe».

Em (5), o objeto/complemento indireto do verbo dar é «à mãe», objeto/complemento este antecedido da preposição a. A sua substituição pelo pronome pessoal oblíquo átono lhe faz desaparecer esta preposição. 

(6) «A criança deu o brinquedo à Joana e a mim» = «A criança nos deu o brinquedo» / «A criança deu-nos o brinquedo».