Sandra Duarte Tavares - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sandra Duarte Tavares
Sandra Duarte Tavares
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É mestre em Linguística Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É professora no Instituto Superior de Comunicação Empresarial. É formadora do Centro de Formação da RTP e  participante em três rubricas de língua oortuguesa: Agora, o Português (RTP 1), Jogo da Língua  e Na Ponta da Língua (Antena 1). Assegura ainda uma coluna  mensal  na edição digital da revista Visão. Autora ou coa-autora dos livros Falar bem, Escrever melhor e 500 Erros mais Comuns da Língua Portuguesa e coautora dos livros Gramática Descomplicada, Pares Difíceis da Língua Portuguesa, Pontapés na Gramática, Assim é que é Falar!SOS da Língua PortuguesaQuem Tem Medo da Língua Portuguesa? Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa e de um manual escolar de Português: Ás das Letras 5. Mais informação aqui.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Além do valor causal, que parece o valor mais comum, (1) não é verdade que esta conjunção pode ter o valor condicional ou ainda o valor temporal? (2) Será que o valor condicional é ultrapassado na língua atual? Eis alguns exemplos:

Condicional:

1. Uma vez que a Suíça fizesse parte da União Européia, teria de aceitar os caminhões.

2. Outros possíveis efeitos para a saúde estão envoltos em controvérsia. Há ligeiros indícios de uma ligação com o cancro (a pílula pode proteger as mulheres de algumas formas de cancro). Uma vez que se deixe de a tomar, há um aumento da probabilidade de conceber gémeos. [O Corpus de Português de Davies e Ferreira]

3. Com um mês de trabalho nas minas, os negros estavam aptos a dar bom rendimento, uma vez que o capataz os soubesse puxar. [Castro Soromenho em O Corpus de Português de Davies e Ferreira]

Temporal:

1. Uma vez que tu tenhas ido ao Brasil, entenderás a mentalidade do povo.

2. Uma vez que tu tiveres ido ao Brasil, entenderás a mentalidade do povo.

3. Ambos os lados concordam que, uma vez que você tiver todos esses bits, deverá ainda codificá-los por algoritmos para um trabalho de valor. [http://www.cinemanasala.com/dd_dts.htm]

Resposta:

A locução «uma vez que» é usada preferencialmente como conector causal, mas pode, de facto, assumir outros valores semânticos:

1. Valor condicional hipotético, iniciando uma oração no modo conjuntivo e exprimindo a ideia de suposição:

(1) «Uma vez que a Suíça fizesse parte da União Europeia, teria...»

(2) «Se porventura a Suíça fizesse parte da União Europeia, teria...»

Por sua vez, as orações condicionais podem também exprimir uma relação de causa/consequência:

(3) «Se a camomila é uma planta, (então) pertence ao reino vegetal.»

(4) «A camomila pertence ao reino vegetal, uma vez que é uma planta.»

2. Valor temporal, iniciando uma oração no modo conjuntivo e exprimindo a posterioridade de um estado de coisas relativamente ao outro:

(5) «Uma vez que tu tenhas ido ao Brasil, entenderás a mentalidade do povo.»

(6) «Depois que tenhas ido ao Brasil, entenderás a mentalidade do povo.»

Pergunta:

Gostaria de saber a análise sintática do seguinte período: «A sociedade, no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição.» A mesma quase gerou violência na sala de professores de minha escola.

Aguardo resposta para a manutenção da paz na minha sala de professores.

 

Resposta:

Neste contexto, o verbo fazer comporta-se como um verbo transitivo predicativo, isto é, um verbo que selecciona uma expressão nominal complemento directo e uma outra expressão (nominal ou adjectival) que lhe atribua uma propriedade — predicativo do complemento directo. Por exemplo: «O Vasco faz a Maria feliz.»

Todavia, a frase que enuncia apresenta, em vez do complemento directo, um complemento preposicional (ou complemento relativo, na nomenclatura gramatical brasileira). Assim, somos obrigados a assumir a existência, um tanto rara, de um predicativo do complemento preposicional:

Sujeito — «A sociedade, no seio da qual me eduquei»

Aposto — «no seio da qual me eduquei»

Predicado — «fez de mim um homem à sua feição»

Complemento preposicional (ou relativo) — «de mim»

Predicativo do complemento preposicional — «um homem à sua feição»

Espero que este meu pequeno contributo possa trazer uma grande paz à sua sala de professores! Disponha sempre!

Pergunta:

Consultando as respostas anteriores, verifiquei a resposta 7647 em que o consultor José Neves Henriques faz uma explanação sobre condicional e pretérito e as diferenças existentes em Portugal e no Brasil.

Atualmente, compulsando o volume 3 da série Soltando a Língua, do professor Sérgio Nogueira, verifiquei que a de NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira), em 1959, tornou o futuro do pretérito a denominação oficial para o antigo "condicional" já em desuso e traz alguns exemplos:

1) Ele dizia que não viria (dizer = pretérito imperfeito; vir = futuro do pretérito);

2) Ele disse que não viria, possibilidade usada pela imprensa quando não se sabe ao certo se ele virá...

Há até um exemplo para se evitar ambigüidades, principalmente na imprensa: «Segundo o médico, a causa da morte seria traumatismo craniano.» Nesse caso, não sabemos ao certo se o médico afirmou que a causa morte é traumatismo craniano, mas ele (= o jornalista) não tem certeza disso, ou se nem o médico tem certeza da causa da morte. Havendo realmente a certeza, dizemos: «Segundo o médico, a causa da morte é (ou foi) traumatismo craniano.»

Com base na NGB citada, como é correto escrever?:

1) Gostava de saber como será/seria melhor pontuar o texto;
2) Gostaria de saber como será/seria melhor pontuar o texto;
3) Gostaria de saber se há/haveria melhor forma de pontuar o texto.

Na hipótese de não ter a certeza de ter as perguntas acima respondidas, diria: «Ficaria agradecido se me respondesse» e, caso contrário, tendo a (ou quase) certeza de ter as respostas às perguntas: «Ficarei agradecid...

Resposta:

O condicional é considerado, por muitos autores, um modo e ao mesmo tempo um tempo verbal. Tentarei explicar esta dicotomia, usando os seus próprios exemplos.

Quando o condicional exprime a ideia de realização de uma acção posterior ao momento da enunciação, ou seja, quando marca uma localização temporal relativa a um passado, é considerado um tempo verbal. Por esta razão, é designado também por futuro do pretérito:

(1) «Ele disse que não viria

Quando o ponto de perspectiva temporal não é um tempo passado, o condicional adquire um valor modal, pois é usado não para marcar temporalmente um futuro do passado, mas sim para exprimir uma dúvida, uma incerteza:

(2) «Segundo o médico, a causa da morte seria traumatismo craniano.»

O condicional é, ainda, usado para exprimir um desejo, de uma forma delicada:

(3) «Gostaria de saber como seria melhor pontuar o texto.»

O pretérito imperfeito do indicativo, por sua vez, é um tempo gramatical com informação de passado, mas que em muitas construções pode expressar também modalidade. É por este motivo que é designado por imperfeito de cortesia:

(4) «Gostava de saber como seria melhor pontuar o texto.»

O futuro do indicativo pode também, em certos contextos, exprimir modalidade:

(5) «Gostaria de saber como será melhor pontuar o texto.»

Em conclusão, todas as frases que apresenta são correctas, tendo em conta que cada forma verbal expressa valores semânticos diferentes.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem sobre quais as orações coordenadas e subordinadas existentes nesta frase e quais as relações hierárquicas que se estabelecem entre elas.

«Todos os dias os jornais referem que os massacres e as perseguições não param e há muitos timorenses que procuram segurança no exílio, pois não suportam a pressão das autoridades indonésias.»

Grata pela ajuda.

Resposta:

Começo pela divisão e pela classificação das orações:

1. «Todos os dias os jornais referem» — Oração subordinante

«que os massacres e as perseguições não param» — Oração subordinada completiva verbal finita

2. «Todos os dias os jornais referem que os massacres e as perseguições não param» — Oração coordenante

«e há muitos timorenses que procuram segurança no exílio» — Oração coordenada copulativa

3. «há muitos timorenses» — Oração subordinante

«que procuram segurança no exílio» — Oração subordinada adje{#c|}tiva relativa restritiva

4. «Todos os dias os jornais referem que os massacres e as perseguições não param e há muitos timorenses que procuram segurança no exílio» — Oração subordinante

«pois não suportam a pressão das autoridades indonésias» — Oração subordinada adverbial causal finita

As relações hierárquicas que se estabelecem entre as diferentes orações são facilmente compreendidas pela divisão que foi feita em cada grupo; ou seja, a cada oração subordinada corresponde uma oração subordinante; a oração coordenada tem a sua respectiva oração coordenante (que coincide com a subordinante e subordinada completiva verbal) e inclui, por sua vez, uma subordinada relativa e uma adverbial causal.

Espero ter sido esclarecedora! Disponha sempre!

Pergunta:

Sei que não é possível utilizar artigo definido após o relativo cujo.

No entanto, surgiu-me uma dúvida: é possível utilizar artigo indefinido após o relativo cujo?

Exemplo: «Estou lendo um livro cujo um dos autores é professor titular de uma universidade.»

Resposta:

Telmo Móia e João Peres, no livro Áreas Críticas da Língua Portuguesa (1995: 333), referem que o pronome relativo cujo só pode ser complemento genitivo de expressões nominais com determinação definida. Contudo, admitem a possibilidade de ocorrência com numerais cardinais e expressões como muitos, poucos, vários e diversos. Dão como exemplos:

a) «Esta rapariga, cujos cinco irmãos são meus colegas, é uma óptima enfermeira.»

b) «Esta rapariga, cujos muitos irmãos são meus colegas, é uma óptima enfermeira.»

Por conseguinte, podemos considerar correcta a frase que apresenta:

c) «Estou lendo um livro cujo um dos autores é professor titular de uma universidade.»