Rúben Correia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Rúben Correia
Rúben Correia
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Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa - Português Língua Estrangeira/Língua Segunda na referida. Prepara atualmente um doutoramento na mesma área.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe alguma ocorrência registada do verbo endinheirar ou endinheirar-se? Ou apenas ocorre com verbo auxiliar, como em «apareceu endinheirado»?

Resposta:

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista apenas o adjetivo endinheirado, a (en + dinheiro + suf. -ado) para designar uma pessoa que vive na opulência ou que tem muito dinheiro, mencionando igualmente os sinónimos abastado, opulento e rico. O mesmo dicionário refere ainda a forma adverbial endinheiradamente. Já o Novo Aurélio Século XXI e o Novo Houaiss da Língua Portuguesa, ambos dicionários de referência de origem brasileira, além de registarem o supramencionado adjetivo endinheirado/a (como particípio passado do verbo endinheirar), registam ainda a forma verbal transitiva direta e pronominal endinheirar(-se).

No exemplo que o consulente apresenta, o verbo aparecer seleciona o predicativo de sujeito endinheirado, atribuindo uma qualidade a um determinado sujeito. A título de exemplo: «Vinte anos depois, o José apareceu endinheirado.»

Pergunta:

Quando se fala em produtos como enchidos ou relacionados com carne, diz-se "cárnicos", ou "cárneos"?

Resposta:

O termo a aplicar é cárneo («produtos cárneos»).

O Novo Houaiss da Língua Portuguesa (2009) define o adjetivo da seguinte forma: «1 – relativo a carne; 2 – constituído de carne; 3 – cheio de carne (carnudo); 4 – que tem cor de carne.» Em relação à sua etimologia, cárneo deriva do latim carneus, a, um (“feito de carne, corpóreo, carnudo”). O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, também registam cárneo. Note-se, porém, que nenhuma das fontes consultadas consigna "cárnico". Acrescente-se que, em Portugal, o termo cárneo ocorre na administração e no discurso legislativo:

«Produtos cárneos – os produtos à base de carne, fabricados a partir de carnes ou com carne, que tenham sofrido um tratamento tal, que a superfície de corte à vista permita verificar o desaparecimento das características da carne fresca.»

Refira-se, por último, que o eventual uso de cárnico, cuja configuração não foge aos padrões morfológicos do português, pode bem ser o resultado da influência do espanhol, onde a forma adjetival cárnico se usa na expressão industrias cárnicas, ou seja, «indústrias relativas à carne destinada ao consumo» (cf. cárnico no dicionário em linha da Real Academia Espanhola).

Pergunta:

Os neologismos "genocidiário/a" e "genocidiar", inexistentes no Dicionário Houaiss, poder-se-ão utilizar quando as circunstâncias os pedem? Como o que Gengis Khan fez, o que aconteceu durante o poder nazi, nos EUA durante a colonização, o povo branco quase que exterminou 80% a 90% do povo índio, os espanhóis na América do Sul, os britânicos na Austrália, o soviético russo Vyacheslav Mikhailovich Molotov, o qual foi o "genocidiário" na Ucrânia, e que infelizmente ainda continua pelo mundo fora hoje em dia no século 21. 

Obrigado.

Resposta:

De facto, nenhum dos dicionários por nós consultados atesta os vocábulos referidos pelo consulente. Novo Aurélio  define genocídio da seguinte maneira: «Crime contra a humanidade, que consiste em, com o intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, cometer contra ele qualquer dos atos seguintes: matar membros seus; causar-lhes grave lesão à integridade física ou mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de o destruir fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem evitar nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de crianças de um grupo para outro.»

Constatamos ainda a existência do adjetivo genocida (adjetivo comum de dois), que significa: «1. ser relativo a genocídio, ou 2. designar o que ou aquele que perpreta ou ordena um genocídio.»

Note-se, todavia, que a existir efetivamente em uso um verbo com base em genocídio, seria de esperar a forma (não atestada) genocidar, e não "genocidiar", tal como a suicídio corresponde suicidar, e não "suicidiar". Desta forma, seria igualmente de prever a derivação de genocidário, e não "genocidiário". Acrescente-se que em francês se atesta a ocorrência da forma génocidaire, palavra especialmente ligada aos massacres ocorridos no Ruanda em 1994 e  que integra elementos que têm a mesma origem latina dos constituintes da forma possível mas não atestada genocidário.

Pergunta:

É correcto dizer-se «a capitã», em vez de «a capitão»?

Resposta:

A forma feminina do substantivo capitão é capitã, embora os dicionários também registem capitoa (cf. Dicionário Houaiss; José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, regista capitoa na aceção de «mulher do capitão»). Contudo, no contexto militar, pelo menos, em Portugal, está consagrado o uso de capitão como substantivo comum de dois: «o capitão»/ «a capitão».

Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003), baseando-se na observação de corpora linguísticos (conjunto de textos para uso da análise e descrição linguísticas), observa o seguinte:

«1. O feminino em uso é capitã. O feminino capitoa, indicado em alguns manuais, não ocorreu [nos corpora analisados]. A capitã Sochaki disse também que os sérvios da Bósnia foram avisados sobre a ação. [...]»

Note-se que substantivo capitão não deveria ser encarado como um nome comum de dois, como, por exemplo, «o/a estudante» ou «o/a jornalista», onde o determinante marca a diferença de género, daí que tenha uma forma de feminino, «a capitã»...

Pergunta:

«O parque é distante do lago na mesma proporção que a casa é distante daquela árvore.»

«A mãe o amava na mesma proporção que ele a amava.»

Eu devo usar uma preposição depois do «que» nas frases anteriores? «Na mesma proporção em que ele a amava»?

«Na mesma proporção com que a casa é…»?

Eu posso escrever: «com a mesma proporção», ou o certo é «na mesma proporção»?

Resposta:

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, regista as seguintes locuções com o vocábulo proporção: «à proporção» («em número proporcional»; locução adverbial), «à proporção de» («na medida de/em relação com»; locução prepositiva), «à proporção que» («à medida que/ao passo que»; locução conjuncional), «em proporção» (o mesmo que «à proporção»; locução adverbial), «em proporção com/de» (o mesmo que «à proporção de»; locução prepositiva), «na mesma proporção» («proporcionalmente»; locução adverbial) e «na proporção em que» («na medida em que», «à proporção que»; locução conjuncional). Assim, tendo em mente os exemplos que apresenta, a estrutura adequada seria «na mesma proporção», tal como indica na sua pergunta. A introduzir uma oração relativa, a sequência seria «na mesma proporção em que...», seguindo o modelo da locução «na proporção em que».