Miguel Faria de Bastos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Faria de Bastos
Miguel Faria de Bastos
19K

Miguel Faria de Bastos é advogad(Angola/Portugal), estudioso de Interlinguística (v.g., Esperanto e Esperantologia).

 
Textos publicados pelo autor
<i>Emocionante</i> ≠ <i>emotivo</i>... em esperanto

A questão da diferença de significado entre as palavras emocionante e emotivo, tratada com muita propriedade aqui no Ciberdúvidas,  transporta-me, entre o mais, por comparação, à língua veicular internacional esperanto, que bebe quase tudo das línguas indo-europeias  (mormente latim e românicas) mas é semanticamente rigorosa...

 

Que ordem linguística para a nova União Europeia?
O Brexit e as soluções alternativas em aberto.

« (…) Tudo vai passar pela expressão generalizada do bilinguismo: a língua materna e um segundo idioma. E, para este, o Inglês tomou definitivamente a dianteira, enquanto a língua mais universal e “neutra”, na falta de um qualquer esperanto que fracassou (…)».Azar do colunista, logo nesta introdução perentória. (...)»

[in"Público" o dia 18/07, em resposta ao artigo "A torre de Babel da União Europeia, sem o Reino Unido. E agora?”, assinado por António Bagão Félix, no mesmo jornal de 5/07]

Pergunta:

Por vezes usa-se em textos jurídicos §. Na minha pouca literacia jurídica, assumo que se usa com o significado de único, quando, por exemplo, um artigo tem um só número. Podem elucidar-me sobre este assunto?

Aproveito por os felicitar pelos muitos, úteis e duradouros esclarecimentos que prestam à comunidade de falantes do português!

Resposta:

O símbolo § provém da junção de dois ss, que resumem a expressão latina signum sectiōnis, que, literalmente, significa  «sinal de secção» ou «sinal de corte».

Este símbolo serve no antigo direito romano para  marcar o desdobramento dum texto normativo em normas.

Nos diplomas legais ou regulamentares dos países europeus ou europeizados no seu direito e sistema jurídico, inclusive nos países lusófonos, uma unidade normativa, normalmente, aparece designada como artigo.

Historicamente, em Portugal, o símbolo § não aparece escrito a iniciar um parágrafo ou a encabeçar uma norma, nem nas Ordenações Afonsinas, nem nas Ordenações  Manuelinas, nem  nas Ordenações  Filipinas. Contudo, numa edição destas últimas Ordenações com notas remissivas, estas notas aludem aos números em que se dividem as Ordenações precedendo-os do sinal § ou §§ (por exemplo, § 1. ou §§ 3. e 4.; cf. imagem ao lado).

O Code des Français, geralmente conhecido como Código de Napoleão, faz encabeçar cada norma do mesmo com a palavra “article”, seguida dum número sequencial, e não divide qualquer deles em parágrafos (§§).

Em Portugal, os parágrafos marcados com o símbolo § aparecem pelo menos desde o século XIX – à esquerda e nunca por cima do trecho a que se referem, designando secções dum artigo, não o próprio artigo, que encima a norma. Como exemplo, que é hoje uma curiosidade ou arcaísmo sistémico, o Código Comercial, conhecido como Código de Ferreira Borges, aprovado por Carta de Lei de Dom Luís, “Rei de Por...

Pergunta:

Qual dos dois vocábulos é o mais correto – aditamento ou adenda –, quando estamos a falar de contratos?

Resposta:

Os dois termos são etimologicamente diversos mas semanticamente sinónimos na terminologia jurídica, desde logo em sede de contratos. Ambos são usados por juristas, sendo ambos corretos.

O termo aditamento, quando aplicado a um contrato (também pode aplicar-se a negócios jurídicos e atos jurídicos, categorias mais amplas, que abrangem os contratos mas não só estes), ora significa «ato de aditar» (a um contrato, negócio ou ato jurídico), ora significa o resultado desse ato, ou seja, o que foi aditado. O aditamento deixa subentendido que o contrato, negócio ou ato jurídico a que se refere está documentado (um contrato, negócio ou ato jurídico pode ser meramente oral).

As aceções são, portanto, duas: «aditamento documental ao título documentador do contrato, negócio ou ato jurídico» ou «aditamento ao próprio conteúdo desse título», ou seja, ao contrato, negócio ou ato jurídico em si mesmo, contido nesse título.

O aditamento pode, materialmente, acrescentar, encurtar, modificar ou precisar o sentido ou alcance, seja do documento que é objeto de aditamento, seja do seu conteúdo. O termo adenda (em latim: addenda), com valor de substantivo feminino, é, na origem, o gerundivo plural dum adjetivo singular neutro (em latim: addendum). Quer dizer, na origem, conjunto de coisas (cláusulas ou estipulações) que devem ser acrescentadas.

Na prática jurídica, porém, não se nota que o significado do termo adenda difira do significado do termo aditamento. O valor gerundivo etimológico perdeu-se. Aparentemente, em sede jurídica, o termo adenda tem vindo, com o tempo, a ganhar terreno ao termo aditamento, talvez por ser silabicamente mais curto.

No Brasil,...

Pergunta:

Tenho constatado, com estranheza, a utilização da expressão «integração de lacunas» em documentos de natureza jurídica. Mas, olhando à raiz etimológica e ao valor semântico e significado dos termos que integram esta expressão, não seria mais correto dizer «preenchimento de lacunas» ou «suprimento de lacunas»? No português do Brasil, por exemplo, usam quase sempre a opção suprir/suprimento. Gostava de ter a vossa análise.

Muito obrigado!

Resposta:

Os três termos indicados pelo consulente podem considerar-se semanticamente equivalentes no plano da terminologia jurídica, mas a expressão consagrada textualmente no direito português é «integração das lacunas da lei», epígrafe do artigo 10.º do Código Civil Português atual (código vigente em substituição do Código de Seabra, assim chamado por ter tido como redator legislativo o jurista Visconde de Seabra).

Ainda na vigência  do Código de Seabra em Portugal entre 1868 e 1966, já o termo «integração de lacunas» era, como é hoje, usado na jurisprudência e na doutrina com acentuada prevalência sobre os demais dois termos alternativos.

Episodicamente, a jurisprudência e a doutrina portuguesas usam também os termos «preenchimento de lacunas» e  «suprimento de lacunas» com o mesmo  significado. Exemplos disso são os dois excertos de acórdãos de tribunais de 2.ª instância a seguir citados.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/03/2010:

«Existe uma lacuna jurídica (caso omisso) quando uma determinada situação, merecedora de tutela jurídica, não se encontra prevista na lei. Torna-se, então, necessário fazer aquilo que se chama a integração de lacunas, actividade que visa precisamente encontrar solução jurídica para os casos omissos... Sempre que seja possível, recorre-se à analogia, que consiste em aplicar ao caso omisso a norma reguladora de qualquer caso análogo. O recurso ...