Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sou Animador 3D (produzo animações tridimensionais utilizando programas específicos num computador) e no meu dia-a-dia com outros colegas de trabalho usamos essencialmente palavras em inglês para definirmos acções/tarefas e, muitas vezes, aportuguesamos algumas palavras sem pensar duas vezes, tornando-se muito mais fácil a comunicação entre nós. Por exemplo, é muito mais fácil perguntar "Já fizeste o render?" do que perguntar "Já ordenaste ao programa que fizesse os cálculos matemáticos necessários à visualização da imagem final?".

Neste momento estou a acabar uma animação onde preciso de discriminar as tarefas pelos vários animadores de forma a colocá-los na ficha técnica. Como tem de ser feito em Português temos alguma dificuldade em adoptarmos a palavra correcta para 'Texturing', que é o acto de atribuir texturas a uma superfície, dando-lhe a aparência de um material específico. 'Modeling' foi facilmente traduzido para 'Modelação', mas 'Texturing' tem sido coloquialmente referido entre nós por 'Texturização'. Depois de procurar afincadamente num dicionário vimos que realmente existe a palavra 'Texturação', coisa que até hoje nunca ouvimos niguém dizer e que, sinceramente, nos soa pior que o pior palavrão que alguma vez escutámos! Além disso, no dicionário dá a ideia de que esta palavra vem de 'têxtil', coisa que pouco ou nada tem a ver com o nosso trabalho. Portanto a minha pergunta era se se poderia utilizar esta palavra neste contexto de animação tridimensional, ou seja, se a forma realmente correcta de dizer 'atribuir texturas a objectos 3D' se pode dizer 'texturar' (até se me arrepia a espinha ao dizer isto, mas...) e se se traduz correctamente 'Texturing' por 'texturação'.

Obrigado.

Resposta:

Existem registadas em dicionário as quatro palavras, texturar, texturação (Dicionário da Porto Editora), texturizar e texturização (Dicionário Michaëlis).

Texturar significa fazer passar por todas as operações de que consta a texturação.

Texturação é o acto ou efeito de texturar ou dar textura; série de tratamentos (distensão, contracção, pisa, compressão, torção, distorção) a que se submetem as fibras têxteis para as tornar perfeitamente adaptáveis ao fim especial a que cada uma se destina.

Texturizar significa cobrir (paredes, peças de decoração ou outras superfícies) com massa e/ou com tinta, dando em seguida uma textura (algum sulco) a essa cobertura.

Texturização é o acto ou efeito de texturizar.

Considero que, no contexto que apresenta, os termos adequados são texturizar e texturização. Isto porque, se bem entendi, texturar é fazer com que o próprio objecto passe a ter uma textura, ele próprio, como que de dentro para fora, intrinsecamente, enquanto texturizar significa aplicar uma textura a um objecto; a textura não é propriedade em si do objecto ou da superfície em causa, é algo posterior à sua criação.

Pergunta:

Nos meios de comunicação social, é muito frequente ouvirmos o vocábulo “tragédia” aplicado a todo o acontecimento envolvendo mortes. Alguns casos haverá em que a utilização dessa palavra é apropriada, mas noutros não seria melhor falar em "acidente", "crime", "catástrofe", etc.?

Gostaria que me explicasse o verdadeiro sentido de "tragédia" e em que contextos a sua utilização é apropriada.

Resposta:

A palavra tragédia, no contexto que refere, é um hiperónimo, ou seja, qualquer das palavras acidente, crime e catástrofe pode ser substituída pela palavra tragédia quando se registam mortes ou danos físicos ou morais muito graves. A língua oferece-nos a possibilidade de utilizarmos termos que contêm algum tema comum, permutando-os no discurso, para evitar a monotonia e a deselegância da repetição. Neste caso, por outro lado, a substituição faz com que a referência ao facto seja alargada para a referência ao efeito que ele produz em quem sofre o acidente, o crime ou a catástrofe. É uma forma de conferir expressividade ao que se diz, de tentar mostrar ou provocar uma determinada emoção.

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, a palavra tragédia provém do grego tragoidía, «à letra, canto do bode, isto é, canto religioso com que se acompanhava o sacrifício dum bode nas festas de Baco; daí canto ou drama heróico; particularmente, tragédia; narrativa dramática e pomposa; acontecimento trágico, isto é, acontecimento infeliz e muito falado; acto de representar uma tragédia», pelo latim tragoedia, «a tragédia; fig. no pl., efeitos oratórios, movimentos patéticos; declamação; palavras bombásticas»; por via culta. Séc. XVI: «Estas e outras tragédias moveu o Demónio perseguindo as almas pias, enquanto os Mártires batalhavam contra ele...» Arrais, VII, cap. 17, p. 472. Tragidia no séc. XV: «segundo alguns poetas escrevem em suas tragidias...» Ofícios, p. 195.

A palavra tragédia pode ser utilizada em...

Pergunta:

Se grátis é advérbio não pode ser usado com substantivos, como freqüentemente vemos nas faixas espalhadas por São Paulo. Ducha grátis (nos postos), estacionamento grátis, matrícula grátis. Correto?

Resposta:

Duas questões se levantam a propósito desta observação da nossa consulente.

A primeira diz respeito à construção de frases em faixas, cartazes, placas, rótulos, etiquetas, etc. Nestas situações, o contexto e a intencionalidade levam à adopção de expressões simples, tipificadas, sem núcleo verbal expresso. As inscrições que refere são simplificações de frases do género: “Concede-se estacionamento grátis (= de graça, de forma gratuita). Ou seja, o conceder o estacionamento é que é de forma gratuita, e não o estacionamento em si.

Uma segunda questão é a da derivação imprópria. Grátis, inicialmente um advérbio que caracterizava a acção de obter o bem (de graça, sem se pagar por ele), passa a desempenhar a função de adjectivo, caracterizando o próprio bem em si (gratuito), e não a forma como foi obtido. No Dicionário Aurélio Século XXI, já o vocábulo “grátis” vem referido como sendo um adjectivo.

Relacionado com este aspecto, refira-se que há palavras que em certos contextos são advérbios e noutros adjectivos, constituindo-se como modificadores do substantivo: pessoas assim deviam ser recompensadas; muita água; paciência bastante.

Pergunta:

Qual é a regra completa da palavra são dos substantivos compostos?

Resposta:

Quando elemento de palavras compostas que constituem substantivos próprios, a palavra “São” tem autonomia, não sendo ligada por hífen à outra palavra: São João, São Pedro, São Tomé.

Quando elemento de adjectivos ou de substantivos comuns formados a partir desses substantivos próprios, é ligada por hífen: são-beneditense, são-joanino, são-tomense, são-bernardo. No plural destas palavras, apenas se flexiona o segundo elemento: são-beneditenses, são-bernardos, etc.

Pergunta:

É correto em uma frase onde cito 2 pronomes, usar o pronome eu antes do outro? Sempre soube que o correto era o pronome eu por último, mas meu professor me deixou em dúvida.

Ex.: Tu e eu vamos à escola hoje. (assim eu aprendi)
Eu e tu vamos à escola hoje. (assim o professor diz ser o correto)

Resposta:

Quando associado a outros, em frases neutras, o pronome “eu” deverá ser o primeiro, pois ele vai condicionar a pessoa do verbo. A primeira pessoa (eu), associada a outras pessoas (tu, ele, etc.) vai exigir que o verbo vá para a primeira pessoa do plural (nós). Situação idêntica acontece com o pronome “tu”, que também deve ser anteposto aos outros: tu e ele = vós (2.ª pessoa).

No entanto, quando se pretende realçar a outra ou outras pessoas por qualquer motivo (delicadeza em relações sociais, responsabilização, etc.), podemos antepor à nossa pessoa (eu) as outras com quem estamos a falar ou a quem nos referimos.