Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

As seguintes frases estão ambas certas, ou apenas a primeira?

«Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser.»

«Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser.»

A primeira frase é de Mário Gonçalves Viana, no seu A Arte de Redigir, de 1951. Porém, em frases desse tipo eu costumo usar o verbo poder no singular. Está errado?

Muito obrigado.

Resposta:

Ambas as frases podem ser aceites em português, contudo a interpretação da primeira frase, «Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser», é diferente da segunda, «Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser».

Em «Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser», o verbo poder concorda em número com o sujeito da primeira oração, o sintagma nominal (SN) «os funcionários», o que indica que, neste caso, o sujeito da primeira oração é o mesmo da segunda. Por conseguinte, entende-se que a informação veiculada por esta frase destaca os funcionários, sempre afáveis ou prontos a satisfazerem a obrigação de o serem.

Já em «Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser», o verbo poder encontra-se flexionado na terceira pessoa do singular e não concorda em número com o sujeito da primeira oração. Isto indica que, nesta situação, o sujeito da segunda oração não é o mesmo da primeira, ou seja, enquanto na primeira oração o sujeito é o SN «os funcionários», por desencadear concordância em pessoa e número com o verbo ser, na segundo oração o sujeito é toda a primeira oração, «os funcionários foram simpáticos», o que desencadeia concordância verbal na terceira pessoa do singular. Sobre isto, Eduardo Paiva Raposo assinala na Gramática do Português que «nas orações, de facto, não existe um núcleo nominal ou pronominal que possa ser fonte de um traço de número para a concordância. Logo, o verbo assume automaticamente a flexão morfológica singular, quer o sujeito oracional seja simples, quer seja composto» (pág. 24481). Por isso, o sentido desta frase salienta globalmente o facto de ser comum os empregados serem simpáticos.

 

1. Raposo, E. P. (2021), Concordância Verbal. In Raposo...

Pergunta:

Gostaria de saber se verosímil e plausível são realmente sinónimos ou se existe alguma subtil diferença no significado.

Gostaria de saber também a origem etimológica das duas palavras, se será essa a razão para duas palavras tão exóticas e sinónimas coexistirem na nossa língua.

Agradeço, desde já, o vosso trabalho que é sempre exímio.

Resposta:

Em primeiro lugar, agradecemos as palavras simpáticas que nos endereçou.

A palavra verosímil tem como um dos seus sinónimos o vocábulo plausível. De acordo com o dicionário Infopédia, o adjetivo verosímil significa «que parece ser verdadeiro; provável; em que não repugna acreditar, plausível», e o adjetivo plausível apresenta o sentido de «digno de aplauso ou aprovação; aceitação; razoável». No fundo, tendo em conta o significado de ambos os termos, pode-se assumir que verosímil e plausível são palavras sinónimas quando descrevem situações aceites como verdadeiras. Também o dicionário Priberam assume estas duas palavras como sendo sinónimas.

Quanto à sua etimologia, ambos os adjetivos têm origem no latim, sendo que verosímil deriva do étimo latino verisimĭle- e plausível, da palavra latina plausibĭle- (Cf. Infopédia).

 

N. E. (17/11/2022) – A resposta tem em conta a descrição dos uso corrente dos adjetivos em apreço. Contudo, numa perspetiva especializada, verosímil e plausível distinguem-se claramente quanto ao significado, conforme observa o consultor Miguel Faria de Bastos<...

A expressão «desculpa lá»
A análise da palavra

«Por vezes, nas minhas aulas de Português como Língua Estrangeira, sou surpreendida com algumas questões singulares que me deixam a pensar sobre a forma como nós, falantes nativos, usamos a língua. Há uns tempos, um aluno perguntou-me se o «desculpa lá» que tinha ouvido na rua significava «I’m sorry». Mas afinal o que é este «lá»? E qual a função desta palavra em expressões como «desculpa lá»?» 

Reflexão de Inês Gama sobre os marcadores discursivos, nomeadamente sobre a função  da palavra «lá» na expressão «desculpa lá».

Pergunta:

Tendo em conta as frases abaixo indicadas, perguntava-vos que diferenças semânticas são transmitidas com o uso do pretérito perfeito do indicativo e do pretérito mais-que-perfeito do indicativo.

a. O pintor pintara um belo quadro.

b. O pintor pintou um belo quadro.

Obrigado.

Resposta:

pretérito perfeito do indicativo é usado para localizar temporalmente uma situação anterior ao momento da enunciação, ao passo que o pretérito mais-que-perfeito simples do indicativo localiza uma situação no passado relativamente a outra situação também passada1.

Na frase «O pintor pintou um belo quadro», a situação descrita já aconteceu e encontra-se concluída no momento presente. Já o pretérito mais-que-perfeito simples é pouco comum na língua falada, surgindo mais na linguagem escrita, e usa-se para descrever situações que ocorrem antes de outras já passadas ou para descrever situações vagamente situadas no passado. Assim, na frase «O pintor pintara um belo quadro» pressupõe-se que a situação descrita foi concluída antes de uma outra (que não é referida na frase, mas pode ocorrer noutras frases do mesmo contexto).

Usualmente, o pretérito mais-que-perfeito simples ocorre em frases em que a situação precedida pela descrita pelo verbo neste tempo é tomada como tempo de referência, podendo ser dada de forma explícita, como acontece em (1), ou implícita, como se verifica em (2).

(1) O João afirmou que a Maria cantara muito bem.

(2) Dias antes, a Rita pedira desculpas.

Em (1) o ato de cantar precede temporalmente a afirmação do João, e em (2) o adjunto temporal «dias antes» aponta para um complemento implícito que alude ao tempo de referência.

Resta ainda assinalar que o pretérito mais-que-perfeito simples é equivalente ao pretérito mais-que-perfeito composto (usado com mais frequência e na linguagem corrente), por isso, em vez de «O pintor pintara um belo quadro» é possível «O pintor tinha pintado um belo quadro», visto que os dois tempos concorrem com o mesmo valor temporal.

 

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Pergunta:

Nos versos d'Os Lusíadas

«Quem valerosas obras exercita
Louvor alheio muito o esperta e incita...»

qual a função sintática da oração substantiva relativa?

Resposta:

Na frase «Quem valerosas obras exercita / Louvor alheio muito o esperta e incita» que, pertence aos versos finais da estância 92 do Canto V da obra Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões, a oração relativa «Quem valerosas obras exercita» desempenha a função sintática de complemento direto.

Na frase em análise, os verbos da oração principal são espertar («esperta») e incitar («incita») e têm como sujeito o sintagma nominal «louvor alheio» e complemento direto o pronome clítico acusativo «o». Contudo, o pronome «o» é o referente da oração relativa que, nesta situação específica, assume a posição de tópico marcado da frase, ou seja, é o primeiro elemento da frase. Ora, segundo Inês Duarte na Gramática do Português1, «quando o tópico marcado é retomado por um pronome, encontram-se frases alternativas em que esse tópico ocorre internamente ao comentário com a mesma função sintática desempenhada pelo pronome» (pág. 411). Isto significa, portanto, que a oração relativa «Quem valerosas obras exercita» desempenha a mesma função sintática do seu referente na oração principal, o pronome o. Além disso, é típico nas línguas românicas, como o português, a retoma do tópico marcado envolver um pronome clítico acusativo.  

No fundo, o que o autor pretende dizer nestes dois versos é que o louvor/elogio estimula aqueles que realizam feitos extraordinários.

 

1.Duarte, Inês (2013), Construções de Topicalização. In Raposo et al. (2013).