Helena Ventura - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Helena Ventura
Helena Ventura
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Licenciada em Filologia Germânica, pós-graduação em Linguística. Autora, entre outras obras, do Guia Prático de Verbos com Preposições.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se as formas «renunciou ao cargo» e «renunciou o cargo» são ambas correctas ou se a segunda é incorrecta.

Obrigado.

Resposta:

O verbo renunciar pode assumir diferentes significados, dependendo dessa situação o uso, ou não, de preposição.

Assim:

1 – renunciar = «abandonar um cargo ou uma função, abdicar». Rege a preposição a. Ex.: «O rei renunciou ao trono em favor da filha primogénita.»

2 – renunciar = «não aceitar por convicção, recusar, rejeitar». Não rege preposição. Ex.: «O monge renunciava todos os bens.»

3 – renunciar = «renegar uma fé ou crença ou ideologia, abjurar». Não rege preposição. Ex.: «Tinham renunciado a fé dos antepassados.»

4 – renunciar = «desistir voluntariamente de alguma coisa». Rege a preposição a. Ex.: «Decidiu renunciar à viagem.»

No exemplo apresentado, depende da situação, isto é, não sabemos se já possuía o cargo e o abandonou (com a), ou se simplesmente o recusou (sem preposição).

Pergunta:

Li as vossas respostas sobre a regência do verbo lembrar, e aproveito o contexto (tratando-se já do antónimo deste): qual a regência do verbo esquecer?

Por favor, esclareçam-me através de exemplos.

Obrigado e bom trabalho!

Resposta:

1 – O verbo esquecer pode ser utilizado sem preposição:

Ex.: «Esquecia facilmente o nome dos alunos.» = não ser capaz de recordar;

«Aqueles dias nunca esqueceriam.» = determinada lembrança deixar de estar presente na memória de alguém;

«Esqueceu o alemão que tinha aprendido no jardim-escola.» = deixar de possuir determinado conhecimento ou deixar escapar da memória;

«Um país que esquece o seu património não o merece.» = não dedicar atenção ou interesse, descurar;

«Esqueceu o respeito que era devido ao pai.» = ignorar normas ou princípios.

2 – Esquecer-se de; ex.:

«Esqueci-me do modo como se faz esse bolo.» = deixar de possuir determinado conhecimento;

«Esqueceu-se de pôr a carta no correio» = não fazer alguma coisa por descuido ou falta de atenção;

«Esqueceu-se das horas e trabalhou até às quatro da manhã» = estar absorvido em qualquer actividade e não se aperceber da passagem do tempo;

«Esqueceu-se do porta-moedas em casa.» = deixar (por descuido ou inadvertência).

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a utilização da palavra na ou da: «Essas modificações decorrem na sequência de alteração e republicação do decreto», ou «Essas modificações decorrem da sequência de alteração e republicação do decreto».

Agradecia um resposta à minha dúvida.

Obrigada.

Resposta:

O verbo decorrer, no sentido em que é utilizado, significa «ser resultado de, ter origem em, derivar, provir». A preposição que se segue é a preposição de.

Em nosso parecer, a formulação de ambas as frases não está correcta. Na primeira frase, a forma verbal a utilizar deveria ser ocorrem, e não decorrem. Assim:

«Essas modificações ocorrem na sequência de alteração...»

Na segunda frase, para que a formulação esteja correcta, devemos omitir «na sequência». Assim:

«Essas modificações decorrem de alteração...»

Pergunta:

Mais uma vez gostava de congratular a equipa do Ciberdúvidas pelo vosso desempenho. Não me canso em enaltecer o quão agradecida estou pelo serviço que é prestado à língua portuguesa.

Desta vez a minha dúvida reside na regência do verbo lembrar. Li um comentário que fizeram a respeito duma personalidade brasileira: «Lembramos e prestamos várias homenagens a este grande brasileiro.»

A minha dúvida é a seguinte, esta frase está correcta no português europeu? Sei que o verbo lembrar requer o uso da preposição de. Mas pergunto-me se admite excepções e se a frase transcrita é uma delas.

Agradeço desde já a atenção dada à minha questão. Infelizmente, não encontrei nenhuma resposta no vosso repertório de perguntas e respostas que me consiga esclarecer.

Obrigada.

Resposta:

O verbo lembrar pode surgir com ou sem conjugação reflexa, variando ligeiramente o significado, de acordo com os contextos.

Vejamos algumas situações:

1 — Usado sem pronome reflexo: «trazer à memória, recordar.»

Ex.: «Ainda hoje lembra o irmão com saudade.» «Esta paisagem lembra-lhe a infância.»
 
2 — Usado com pronome reflexo: «reter na memória, manter na mente.»

Ex.: «Lembrou-se do amigo ausente.» «Não me lembro da data do teu aniversário.»

Na frase apresentada, o verbo aparece sem conjugação reflexa, estando o significado de acordo com  1:

«Pretende-se trazer à memória das pessoas o grande brasileiro...»

Por conseguinte, a formulação está correcta.
 
Nota: algumas vezes, por questões de estilo, poetas e romancistas suprimem o pronome em contextos onde devia ser usado. Por exemplo:

«lembro teu corpo estendido...» ( David Mourão-Ferreira, in Música de Cama)

«lembro perfeitamente a tarde quieta em que parei à porta da pensão...» (José Rodrigues Miguéis, in Léah)

Pergunta:

Qual a forma correcta: «Acometido de ociosidade», ou «acometido por ociosidade»?

Os meus agradecimentos, desde já.

Resposta:

O verbo acometer, no sentido em que é apresentado, significa «manifestar-se com grande intensidade, apoderar-se de, dominar».

Normalmente, usa-se a expressão «ser acometido de», por isso a forma corre{#c|}ta é: «acometido de ociosidade».

Refiro, a título de exemplo, esta passagem de Miguel Torga:

«Já na rua, de mala na mão, fui acometido dum pânico súbito: toda a minha natureza parecia estranha ao mundo que agora pisava» (M. Torga, Criação, p. 398).

No entanto, assinale-se que «ser acometido» é a voz passiva de acometer, na acepção de «apoderar-se, atacar, dominar», pelo que é de admitir a preposição por a marcar o agente da passiva, que refere condição física ou psicológica («Acometeu-a uma doença fatal» = «foi acometida de/por uma doença fatal»; cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).