Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava a ler Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett, quando me deparo com o seguinte passo (capítulo XXI): «Oh! que imagem eram esses dois [Carlos e Joaninha], no meio daquele vale nu e aberto, à luz das estrelas cintilantes, entre duas linhas de vultos negros [constitucionalistas e realistas], aqui e ali dispersos e luzindo acaso do transiente reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil...» A minha dúvida parte da surpresa que experienciei ao descobrir a palavra transiente, que tinha por inexistente à sombra de transeunte... A etimologia parece-me fácil de remontar: particípio presente do verbo latino transeo, -is, -ire, -i(v)i, -itum («atravessar, ir além de»). O que me espanta é o facto de se haver preservado os dois radicais, quando [o bulício próprio] à língua portuguesa apontariam apenas para a vitória triunfal da forma acusativa transeunte – possivelmente a única que se atesta como nome. Esconde-se aqui alguma outra razão que não esteja a reflectir o seu brilho?

Agradecido.

P. S. – Aproveito para agradecer ao consultor Gonçalo Neves pela sua amável solicitude em responder às questões de fundo clássico com a maior ciência e o maior detalhe. A que diz respeito à voz passiva é, sem dúvida alguma, soberba. A explicação, as citações... Muito agradecido.

Resposta:

Em latim, o verbo irregular eo, is, ire, i(v)i, itum («ir») apresenta um único particípio presente: iens, euntis. Deste verbo derivam muitos outros, entre os quais o referido pelo nosso consulente: transeo, ‑is, ‑ire, ‑i(v)i, ‑itum («atravessar, transpor»). Tal como o verbo primitivo, também este verbo derivado apresenta um único particípio presente (transiens, transeuntis), e é precisamente da forma oblíqua transeunte(m) deste particípio que deriva o nosso conhecido vocábulo transeunte.

Não encontro abonada, em nenhum dicionário, uma hipotética segunda forma deste particípio (transiens, *transientis) que possa justificar etimologicamente o vocábulo transiente. Mesmo o colossal Lexicon totius latitinatis, cujo quinto volume compulsei, só contém a forma clássica transiens, transeuntis. Creio, por isso mesmo, que enferma de erro o dicionário Houaiss Eletrónico, e outros que lhe seguem as pisadas, quando apresenta do seguinte modo a etimologia de transiente:

«lat. transiensentis part. pres. do v. lat. transīre ´passar de um lugar a outro; passar, decorrer (o tempo)´;»

Se é certo que transiente não deriva do latim clássico, poderá a sua origem remontar ao chamado latim vulgar? Não me parece nada sustentável tal hipótese, ...

Pergunta:

Gostava de saber se o processo foi análogo em português. Os antigos gramáticos já se tinham apercebido?

«De même, les formes de la conjugaison passive – forme suffixée amatur au présent et périphrastique amatus est au parfait – ayant été ressenties comme insuffisamment marquées temporellement, ont fait l'objet d'une régularisation qui se perpétue en français : création de amatus fuit (d'où fr. il fut aimé) pour remplacer amatus est, ce dernier se substituant à amatur (d'où fr. il est aimé)» (Ghislaine Viré, Le regard réflexif porté sur la langue latine).*

[Tradução do consultor Gonçalo Neves: «De igual maneira, as formas da conjugação passiva – forma sufixada amatur no presente e perifrástica amatus est no perfeito [do indicativo] – evidenciando uma marcação insuficiente do ponto de vista temporal, sofreram um processo de regularização, que se perpetuou em francês, com a criação de amatus fuit (donde il fut aimé em francês), para substituir amatus est, forma que ocupou o lugar de amatur (donde il est aimé em francês).»

Resposta:

Em latim, como refere a autora citada pelo consulente, a voz passiva admite tanto formas sintéticas, que apresentam desinências próprias, como formas analíticas, criadas por meio do verbo auxiliar esse («ser»). Tomando como exemplo o verbo amare («amar») e limitando a análise, para facilitar a exposição, à terceira pessoa do singular, passo a apresentar os modos e tempos mais relevantes:

presente do indicativo:                      amatur                         («é amado»)

presente do conjuntivo:                     ametur                         («seja amado»)

imperfeito do conjuntivo:                    amabatur                     («era amado»)

perfeito do indicativo:                        amatus est                   («foi amado»)

mais que perfeito do indicativo:           amatus erat                  («tinha sido amado»)

Pergunta:

Como devemos escrever o nome da sonda da Agência Espacial Europeia que pousou no cometa 67P/Tchuriumov-Guerassimenko, e que é uma homenagem a um rio egípcio? File (como escreve o Público), ou Philae (como escreve o Diário de Notícias)? E como pronunciar a palavra?

Muito obrigado.

Resposta:

A sonda espacial referida pelo consulente foi batizada com o nome de um obelisco que contém uma inscrição bilingue que serviu, juntamente com a famosa Pedra de Roseta, para decifrar os hieróglifos egípcios. O obelisco, aliás, apresenta a mesma designação que a ilha onde se encontra. Esta ilha, situada em pleno lago Nasser, no Egito, era conhecida por Φίλαι1 em grego. Os romanos, naturalmente, transcreveram este topónimo por Philae (também grafado Philæ), vocábulo que, inicialmente, teria sido pronunciado ['pʰilai̯], mais tarde ['pʰilae̯] e, finalmente, ['filɛː]2. Ora, no Egito, já não se fala grego, mas, sim, árabe egípcio, e os egípcios chamam a esta ilha فيلة/'fiːlɐ/. Este topónimo arábico, que obviamente provém do grego Φίλαι, pronuncia-se quase como o nosso vocábulo fila, como se pode constatar aqui. Refira-se ainda que os egípcios aplicam à sonda exatamente o mesmo nome (فيلة) pelo qual conhecem a ilha, o que faz todo o sentido, pois o primeiro deriva do segundo.

É sabido que a grande maioria dos vocábulos portugueses provêm da correspondente forma do acusativo latino. Ora, o acusativo de Philae é Philas, pelo que este topónimo naturalmente dá Filas em português, tal como Athenas (acusativo de Athenae) dá Atenas, Thebas (acusativo de Thebae) dá Tebas, Delphos (acusativo de Delphi) dá Delfos, etc. Os dicionários de latim-português que pude consultar1 traduzem justamente Ph...

Pergunta:

Dum ponto de vista semântico, o verbo português querer está para os verbos francês vouloir e latino velle, apesar de não estabelecer nenhuma relação etimológica com os dois últimos. A verdade é que querer há de vir de quaerere («perguntar, procurar»). Gostava que me esclarecessem a propósito desta deriva semântica: «perguntar/procurar» – «querer». Também indago se não se atesterá no português medieval qualquer vestígio resiliente de um verbo (suponhamos) "voler".

Agradecido.

Resposta:

Em latim, a ideia de querer era expressa pelo verbo velle. Trata-se de um verbo irregular, como se pode constatar pela conjugação do presente do indicativo, que figura na seguinte tabela:

volo       («quero»)                  volumus      («queremos»)

vis          («queres»)                 vultis           («quereis»)

vult        («quer»)                    vult             («querem»)

 

Com o decorrer dos séculos, este verbo sofreu um processo natural de regularização no chamado latim vulgar. No século sexto da nossa era, encontra-se atestada a forma volimus (em vez de volumus); do século seguinte, temos testemunho da forma volemus e, na célebre crónica de Fredegário, deparam-se-nos dois exemplos de volestis (em vez de vultis); já no século oitavo, encontra-se documentada a forma voles (em vez de vis).

Por estas alturas, o infinitivo velle teria assumido a forma *volere, e o presente do indicativo apresentaria aproximadamente a seguinte composiç...

Pergunta:

Trabalho num órgão de comunicação social [português] e um nosso cliente expôs o seguinte: «Os jornalistas referem-se ao sistema informático [do Ministério da Justiça] Citius, pronunciando um "t" em vez de "tsi". A pronúncia deveria ser "citsius". Naturalmente que é latim, mas temos nas línguas que lhe deram origem casos parecidos, como do francês "direction" ou "patience". De facto o "ti" seguido de vogal lê-se "tsi".»

Gostaria de saber se o acima exposto está correto.

Resposta:

O advérbio citius («mais depressa»), comparativo de superioridade do advérbio cito («depressa, rapidamente»), encabeça o tão frequentemente citado, e muitas vezes mal traduzido, mote olímpico citius, altius, fortius («mais depressa, mais alto, com mais força»), no qual o Ministério da Justiça de Portugal se terá inspirado para batizar a aplicação informática Citius, que tanta polémica tem gerado.

Quanto à pronúncia do vocábulo em questão, a resposta não poderá ser taxativa nem linear. Na verdade, no curso da sua longa história de mais de dois milénios, a pronúncia do latim passou por sucessivas transformações, pelo que não existe, nem existiu, apenas uma, mas várias pronúncias desta língua.

Em termos didáticos, é habitual falarmos de três pronúncias do latim, embora existam mais:

1) Pronúncia tradicional portuguesa, ensinada durante muitos anos nos liceus e nas universidades deste país;

2) Pronúncia romana ou eclesiástica, usada no Vaticano e ensinada nos seminários de Portugal e de muitas outras nações;

3) Pronúncia restaurada, atualmente ensinada nos liceus e nas universidades de Portugal e de muitos outros países. Esta última pronúncia, que procura reproduzir a pronúncia do latim literário do tempo de Cícero e de Virgílio, é igualmente a que preferem os defensores da Latinitas viva («latim vivo») e a que os mesmos ut...