Pergunta:
Estava a ler Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett, quando me deparo com o seguinte passo (capítulo XXI): «Oh! que imagem eram esses dois [Carlos e Joaninha], no meio daquele vale nu e aberto, à luz das estrelas cintilantes, entre duas linhas de vultos negros [constitucionalistas e realistas], aqui e ali dispersos e luzindo acaso do transiente reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil...» A minha dúvida parte da surpresa que experienciei ao descobrir a palavra transiente, que tinha por inexistente à sombra de transeunte... A etimologia parece-me fácil de remontar: particípio presente do verbo latino transeo, -is, -ire, -i(v)i, -itum («atravessar, ir além de»). O que me espanta é o facto de se haver preservado os dois radicais, quando [o bulício próprio] à língua portuguesa apontariam apenas para a vitória triunfal da forma acusativa transeunte – possivelmente a única que se atesta como nome. Esconde-se aqui alguma outra razão que não esteja a reflectir o seu brilho?
Agradecido.
P. S. – Aproveito para agradecer ao consultor Gonçalo Neves pela sua amável solicitude em responder às questões de fundo clássico com a maior ciência e o maior detalhe. A que diz respeito à voz passiva é, sem dúvida alguma, soberba. A explicação, as citações... Muito agradecido.
Resposta:
Em latim, o verbo irregular eo, is, ire, i(v)i, itum («ir») apresenta um único particípio presente: iens, euntis. Deste verbo derivam muitos outros, entre os quais o referido pelo nosso consulente: transeo, ‑is, ‑ire, ‑i(v)i, ‑itum («atravessar, transpor»). Tal como o verbo primitivo, também este verbo derivado apresenta um único particípio presente (transiens, transeuntis), e é precisamente da forma oblíqua transeunte(m) deste particípio que deriva o nosso conhecido vocábulo transeunte.
Não encontro abonada, em nenhum dicionário, uma hipotética segunda forma deste particípio (transiens, *transientis) que possa justificar etimologicamente o vocábulo transiente. Mesmo o colossal Lexicon totius latitinatis, cujo quinto volume compulsei, só contém a forma clássica transiens, transeuntis. Creio, por isso mesmo, que enferma de erro o dicionário Houaiss Eletrónico, e outros que lhe seguem as pisadas, quando apresenta do seguinte modo a etimologia de transiente:
«lat. transiens, entis part. pres. do v. lat. transīre ´passar de um lugar a outro; passar, decorrer (o tempo)´;»
Se é certo que transiente não deriva do latim clássico, poderá a sua origem remontar ao chamado latim vulgar? Não me parece nada sustentável tal hipótese, ...