Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Nos meus tempos de estudante de Latim, aprendi que a abreviação etc. se referia a «et coetera». No Ciberdúvidas aparece uma resposta em que a expressão surge grafada «et cetera» e «et caetera», que julgo não serem corretas. Gostava de ver esclarecida esta dúvida.

Resposta:

Em latim, ⟨ae⟩ e ⟨oe⟩, também grafados ⟨æ⟩ e ⟨œ⟩, representavam ditongos. Em latim arcaico, ⟨ae⟩ e ⟨oe⟩, pronunciavam-se /ai̯/ e /oi̯/, respetivamente, com o segundo elemento completamente fechado, e era assim que se escreviam nos textos mais antigos: ⟨ai⟩, ⟨oi⟩. No período tardio do latim arcaico, porém, o segundo elemento sofreu um abaixamento, e estes ditongos passaram a pronunciar-se /ae̯/ e /oe̯/, respetivamente. Mais tarde, foram alvo de um processo gradual de monotongação, iniciado nas zonas rurais, e começaram a soar como /ɛː/ e /eː/.

Este processo de monotongação, segundo alguns autores, não terá ficado concluído antes do terceiro século na nossa era. Seja como for, Marco Terêncio Varrão, escritor romano contemporâneo de Júlio César, dá nota do fenómeno num famoso tratado sobre latim, que infelizmente nos chegou incompleto. Diz ele taxativamente que In pluribus verbis a ante e alii ponunt, alii non1, ou seja, «Há muitas palavras em que uns dizem o a antes do e e outros não». Varrão acrescenta ainda que In Latio rure edus; qui in urbe ut in multis a addito, aedus2, ou seja, «Na zona rural do Lácio diz-se edus («cabrito»), mas na cidade, como acontece em muitas outras, juntam-lhe um a e dizem aedus».

A referida monotongação, acompanhada pela perda progressiva da quantidade vocálica, desencadeou um fenómeno novo em latim: a homofonia. Por outras palavras, houve uma série de vocábulos que anteriormente diferiam na pronúncia e na grafia e que passaram a destrinçar-se a...

Pergunta:

A respeito da toponímia latina, e do próprio latim em si, é de amplo conhecimento, mesmo entre os menos esclarecidos na língua, que o português há séculos adota regras bem fixas para tradução e/ou transcrição de elementos provenientes desta língua quase extinta. Contudo, mesmo seguindo as ditas, há certas incongruências aparentes. Por exemplo, é sabido que o -um latino, excetuando casos pontuais como forum (que existe no português como foro/fórum), é transcrito como -o. Assim sendo, diríamos “Moguntiaco”, Londínio, Mediolano, Emínio, etc. Entretanto, quando esse -um é usado na toponímia para descrever, à latina, tribos e povos nativos, como devemos proceder? Nestes exemplos (Augusta Treverorum; Civitas Igaeditanorum; Forum Gallorum) devemos dar preferência à regra (“Augusta Treveroro”; “Cidade Igeditanoro”; “Fórum/Foro Galoro”), ou à tradução («Augusta dos Tréveros»; «Cidade dos Igeditanos»; «Fórum dos Galos»)? Destes últimos, sei que Forum Gallorum em espanhol se diz Foro de los Galos e, por associação, poderíamos admitir uma clara tradução para o português.

Resposta:

Se é verdade que, de modo geral, a terminação -um dos substantivos latinos neutros da primeira declinação passa a -o em português (por exemplo, templum > templo, verbum > verbo, vocabulum > vocábulo), importa igualmente recordar que, em vocábulos mais recentes, essa terminação, por vezes, se mantém, como no caso de álbum, factótum, fórum, embora os dois últimos admitam também uma variante com a terminação habitual (factoto, foro). O caso de vade-mécum, vocábulo que, traduzido à letra, significa «vai comigo», é um pouco diferente, porque a terminação -um “pertence” à preposição cum («com»).

Dos primeiros quatro topónimos apresentados pelo consulente, há um cujo aportuguesamento merece reparo. Em latim dizia-se Mogontiacum (com o), e, ao transpor este vocábulo para português, é necessário dar ao ti o valor fonético que ele tinha em latim tardio, pelo que o aportuguesamento correto será Mogoncíaco.

Quanto aos topónimos em cuja composição entra um genitivo plural da segunda declinação (terminação -orum), torna-se difícil aconselhar a forma mais correta, devido à escassa tradição de transposição desse tipo de vocábulos. Conheço apenas dois casos de vocábulos provenientes do genitivo plural latino. Um deles é o substantivo quórum, que provém de quorum («dos quais»), genitivo plural de qui ou quis («que, qual, quem»). O outro é santoro, nome de um bolo que os padrinhos costumavam dar aos afilhados no Dia de Todos os Santos. Este vocábu...

Pergunta:

Na cripta da Igreja de Santo António, em Lisboa, encontra-se uma lápide em mármore com as seguintes palavras latinas:

«Nascitur. Hac. Parva. Ut. Tradunt. Antonius. Aede. Quem. Coeli. Nobis. Abstulit. Alma. Domus» (Alberto Pimentel, Livro das Lágrimas, Lisboa, Livraria Editora Mattos Moreira, pág. 48; ver também aqui).

Segundo parece, a sua tradução será:

«Nesta casa, segundo a tradição, nasceu e viveu António, que foi roubado pela gloriosa morada do Céu» ("Santo tem igrejas em Lisboa e Pádua", Diário de Notícias, 12/06/2012).

Teria todo o gosto em saber se esta tradução está bem feita. Muito obrigado.

Resposta:

A tradução referida pelo consulente merece alguns comentários. Para apimentar a questão, vou compará-la com outra versão, da autoria de Silva Pinto, que consta na sua obra Santos Portugueses, publicada em 1895.

Reza assim a tradução deste escritor luso, que anda um tanto esquecido: «Nesta pequena casa, segundo referem, nasceu António, aquele que a celestial morada nos arrebatou.»

Para efeito de comparação, a tradução apontada pelo consulente será designada por V1, e a versão de Silva Pinto, por V2. Confrontem-se então, ponto por ponto:

Nascitur – Ambas as versões traduzem este presente histórico («nasce») pelo pretérito perfeito («nasceu»), o que me parece uma boa opção. O que julgo estranho e inaceitável é o facto de a versão V1 acrescentar um verbo («viveu») que não se encontra no original latino... Ter‑se‑á baseado noutra versão?

hac parva aede – A versão V1 omite o adjetivo parva («pequena»), o que é reprovável. Ambas as versões traduzem aede por «casa», mas geralmente aedes significa «templo» no singular e «casa» no plural. Neste caso, como aedes se encontra no singular, seria mais curial traduzir por «templo», ou mesmo por «igreja», até porque é disso que se trata. No entanto, como esta igreja, ao que parece, foi construída no local onde antes se situava a casa da família Bulhões, pode aceitar-se a tradução «casa» num contexto histórico mais alargado. Uma alternativa um tanto ousada, mas aceitável, para escapar a esta ambiguidade, seria traduzir por «local», como faz uma versão espanhola que consulte...

Pergunta:

Qual é a etimologia de família?

Resposta:

Os romanos, no decorrer das suas imparáveis conquistas, iam capturando inúmeros escravos, que eram utilizados nos mais diversos serviços. Sendo a escravatura um fenómeno tão difundido entre os romanos, é natural que se servissem de uma terminologia abundante a este respeito. Na verdade, há quem diga que existiam cerca de trezentas espécies de escravos, segundo as funções que exerciam. Por exemplo, o atriensis era o guarda-mor do atrium, o topiarius podava as árvores, o ostiarius era o guarda da porta, o lactarius preparava o creme, o placentarius fazia pastéis, o cellarius tinha a seu cargo a adega ou o celeiro, o degustator provava todas as comidas antes de as apresentar, isto para referir apenas alguns exemplos...

Além destes termos mais especializados, os romanos recorriam a outros mais genéricos, que indicavam a condição do escravo sem considerar propriamente a função exercida pelo mesmo. Entre estes termos, os mais frequentes eram servus, que designava o escravo do ponto de vista jurídico ou político, famulus (pronuncia-se “fámulus”), que indicava o escravo do ponto de vista patriarcal, e mancipium, que denominava o escravo do ponto de vista económico, ou seja, considerando-o como propriedade ou mercadoria.

O termo famulus, provavelmente oriundo do osco, designava o escravo que servia em casa, sob a autoridade de um patriarca. Ao conjunto de escravos que serviam sob o mesmo teto chamava‑se familia. Era preciso mais do que um famulus para se constituir uma familia. Cícero dizia (Cæcin. 55) que unus homo familia non est («um só homem não constitui uma familia»), e o jurisconsulto Julius ...

Pergunta:

Gostaria de saber qual o significado da expresão «ne aequo».

Obrigada.

Resposta:

Perante a ausência de contexto, é difícil dar resposta cabal a esta consulta...

A forma æquo (por vezes grafada aequo) é o dativo ou ablativo singular do adjetivo æquus, æqua, æquum (por vezes grafado aequus, aequa, aequum), que significa «igual; plano; cómodo, favorável, propício; equitativo, justo; conveniente, decoroso, decente». Pode igualmente considerar-se o dativo ou ablativo singular de æquum (também grafado aequum), que significa «equidade» e não é mais do que a forma neutra do adjetivo anterior, usada substantivamente.

Quanto a ne, trata-se de uma partícula que geralmente significa «que não», «para não», «para que não». Também poderia tratar-se da segunda pessoa do singular do imperativo do verbo neo («tecer»), mas não deverá ser esse o caso...

Portanto, o significado de ne æquo (ou ne aequo) dependerá obviamente do contexto. Encontrei a expressão, por exemplo, num discurso proferido por Friedrich Layriz em 1845, na cerimónia de encerramento do ano escolar de um liceu em Munique, na Alemanha:

«Ne æquo longius sermo protrahatur» («Para o discurso não se alongar mais do que o devido»).

Neste caso, æquo é o ablativo singular de æquum («equidade, o que é justo, o que é devido») e depende do comparativo longius («mais longo»).