Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em regra, para intensificar uma qualidade ou estado (adjetivos), utiliza-se advérbios.

Ex.: muito linda! ( adv + adj ) quão linda! ( adv + adj )

Há também a possibilidade de usar um advérbio para intensificar outro.

Ex.: muito longe. ( adv + adv ) quão longe. (adv + adv )

A dúvida persiste na utilização do que como advérbio.

Ex.: Que linda! (neste caso o que equivale ao quão, ou seja, advérbio de intensidade ligado a um adjetivo).

Que felicidade em vê-la! ( já neste exemplo o que não pode ser um advérbio, pois o termo está modificando um substantivo abstrato).

Que amor de pessoa.

Após breve pesquisa, obtive a seguinte conclusão: O que é um pronome indefinido, servindo para intensificar o grau do substantivo abstrato felicidade.

Gostaria de mais esclarecimentos sobre o assunto e se estou correto.

Resposta:

Sobre «Que linda!», não há dúvida de que o vocábulo que, equivalente a quão, modifica o adjetivo linda, de modo que só pode ser classificado como advérbio, pois esta classe gramatical é a única que modifica um adjetivo.

– Que linda ela é!

– Quão linda ela é!

Sobre «Que felicidade em vê-la!» ou «Que amor você tem por ela, meu amigo!», não há consenso entre os gramáticos normativos tradicionais brasileiros: a maioria considera como pronome interrogativo, ou pronome interrogativo de valor exclamativo, ou pronome interrogativo empregado em oração exclamativa, como Napoleão M. de Almeida, Evanildo Bechara, Celso Cunha, Celso Pedro LuftCarlos E. Faraco e Francisco M. Moura.

No entanto, pela minha experiência de duas décadas como docente no Brasil, atesto que a esmagadora maioria dos professores de português da atualidade, quando tocam nesse ponto, classificam o que ligado a substantivo abstrato (equivalente a quanto(a/s)) da maneira como fazem os gramáticos Domingos P. Cegalla e Amini Boainain Hauy, a saber: pronome indefinido*. Assim, o que, nas duas ocorrências a seguir, seriam classificados como pronome indefinido (indica, intensivamente, uma quantidade indefinida): «Que (= Quanta) felicidade em vê-la!», «

A dimensão deôntica da linguagem
Língua e uso correto

«Assim como tudo na vida, a língua é um produto humano e, portanto, está sujeita ao valor deôntico que os seres humanos damos às coisas – isto é, ao "isso tem que ser assim, e não assado", ao "é necessário buscar o melhor, e o melhor tem que obedecer a certos parâmetros", ao "é um dever, uma obrigação, uma necessidade que algo seja bom, que entreguemos o nosso melhor".

Considerações do gramático brasilero  Fernando Pestana sobre o uso modelar da língua.

Pergunta:

Por que, enquanto usamos seu para se referir a pronomes de tratamento como você, sendo incorreto usar teu em seu lugar, usamos nosso para se referir à locução pronominal «a gente», mas não seu, ainda que conjugado na segunda pessoa do singular?

Em outras palavras, por que dizemos «A gente perdeu nosso voo» e não «A gente perdeu seu voo»?

Obrigado.

Resposta:

O quadro pronominal da variedade brasileira da língua portuguesa (sobretudo em norma não padrão) tem mudado com o tempo.

Nas gramáticas descritivas (e não normativas) do português brasileiro, já se encontra o uso de «a gente», locução pronominal informal, como forma de 1.ª pessoa do plural, equivalente a nós.

Desse modo, quando um brasileiro usa «a gente», como em «A gente perdeu o nosso voo», a sua gramática mental decodifica «a gente» como nós, isto é, como forma pronominal de 1.ª pessoa do plural. Desse modo, visando à manutenção da uniformidade de tratamento, o pronome possessivo usado no contexto frasal acompanha a mesma pessoa do discurso, de modo que se usa «a gente/nós» e nosso na mesma frase.

O curioso é que o brasileiro letrado sabe que «A gente perdemos» é uma construção linguística socialmente estigmatizada, de modo que usa «A gente perdeu»: isto é, por mais que «a gente» equivalha semântica e discursivamente a nós, a concordância se dá com a forma gramatical da expressão «a gente», que é morfossintaticamente de 3ª pessoa do singular (ex.:« a gente vai», «a gente come», «a gente é», «a gente vê»).

Em tempo: fora da norma-padrão brasileira, não há erro na mistura de tratamento de formas de 3.ª pessoa gramatical, como você, com formas de 2.ª pessoa gramatical, como teu, porque ambas – apesar de pertencerem a pessoas gramaticais tradicionalmente diferentes – se referem à mesma pessoa do discurso, isto é, ao destinatário, ao receptor, ao interlocutor da mensagem.

Todas estas são peculiaridades linguísticas do português brasileiro. Para esse fim específico, recomendamos a consulta à Nova gramática do português ...

Pergunta:

É recomendado não utilizar regionalismos, neologismos e gírias em trabalhos escolares e trabalhos profissionais?

Não sei se tem complicações, pois pode ser que tais termos não façam parte do idioma padrão e que se tenha de se explicar sempre o que eles mesmos queiram dizer!

Pois muito bem, o que vocês entendem disso tudo aí no caso então?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Se o contexto temático dos trabalhos escolares e/ou profissionais ensejar ou possibilitar o emprego de formas linguísticas fora do padrão normativo, como os regionalismos, os neologismos, as gírias e outros usos mais próximos da coloquialidade, não haverá complicações.

Os registros linguísticos — isto é, o uso que o falante faz da língua motivado pelas suas intenções e, sobretudo, pela situação comunicativa — existem justamente para atender a demandas linguísticas interacionais, obedecendo a alguma espécie de contrato comunicativo pressuposto, em que certos usos estarão adequados ao contexto.

Dito isso, em situações com o maior grau de formalidade, recomenda-se o emprego da norma-padrão, ou seja, da norma supradialetal, que busca reduzir ao máximo as marcas dialetais, visando a um modelo de língua mais homogêneo em que todos os falantes do idioma compreendem a mensagem veiculada.

O uso de um dado registro sempre dependerá do contexto comunicativo.

Sempre às ordens!

Pergunta:

«O leitor há de convir COMIGO EM que Fernando Pessoa é um gênio da língua.» (Celso Pedro Luft)

O verbo convir, quando pede a sequência «com alguém» mais «em algo», possui dois objetos indiretos?

Desde já, agradeço a enorme atenção.

Resposta:

Depois da Nomenclatura Gramatical Brasileira* (mais conhecida por NGB), houve uma simplificação de certos termos – não plenamente seguida por todos os gramáticos tradicionais, mesmo após a implantação nacional das determinações desse documento no ensino de gramática.

Um dos pontos de discórdia teve a ver com a simplificação do «complemento relativo» (CR), absorvido pelo termo «objeto indireto» (OI). Qualquer termo preposicionado que servisse de complemento verbal (exceto os que indicassem circunstância adverbial) foi então enquadrado no grupo dos OIs.

O que antes era CR (ex.: «Gosto de você») virou OI. Logo, para ser OI, não era mais necessária a substituição por um pronome oblíquo átono, como em «Deram um presente a Maria = Deram-lhe um presente».

Por conseguinte, todos os termos preposicionados nas frases seguintes passaram a ser ensinados (desde a década de 1960) como OIs no Brasil:

– Discordaram de você.
– Concordaram com você.
– Confiaram em você.
– Apontaram para você.
– Entregaram algo a você.

Desse modo, na frase do consulente – segundo o Dicionário prático de regência verbal, de Celso P. Luft –, o verbo convir, na construção «convir com alguém em alguma coisa», exige dois OIs, segundo a NGB.

Sempre às ordens!

 

* Por ser brasileiro o consulente, a resposta se baseia na terminologia gramatical tradicional empregada no Brasil.