Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Nas frases:

1. «Os três viviam juntos naquele flat.»

2 . «Eles estão junto do pai.»

o termo juntos é adjetivo e tem a função sintática de predicativo do sujeito na primeira frase?

Na segunda frase, o termo junto é advérbio e exerce a função de adjunto adverbial?

Como saber se uso no singular ou no plural ? Como saber se devo escrever como advérbio ou adjetivo?

Obrigado.

Resposta:

Quanto à primeira pergunta do consulente, a resposta é sim: juntos é um adjetivo com função de predicativo do sujeito.

Quanto à segunda pergunta, a respeito da segunda frase, a explicação já não é tão simples, pois há gramáticos (Luiz A. Sacconi, por exemplo) que entendem ser junto um advérbio, com função de adjunto adverbial*, o qual, por sua vez, exige um complemento nominal («do pai»); e há gramáticos (a maioria) que entendem ser junto de uma locução prepositiva, cujo núcleo é o advérbio junto.

Logo, quando for usado como adjetivo, a flexão ocorrerá normalmente: «As três amigas viviam juntas.» Quando for usado como advérbio (núcleo da locução prepositiva junto a/de/com), ficará invariável: «Uma das amigas vivia junto da mãe.»

Para mais esclarecimentos sobre esse caso, recomendamos dois livros: Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Pedro Luft; e Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, de Domingos Paschoal Cegalla.

Sempre às ordens!

*Por ser brasileiro o consulente, foi empregada a nomenclatura gramatical brasileira na resposta.

Pergunta:

Ultimamente, tenho visto em textos a construção «estou diretor», em vez de «sou diretor», buscando exprimir que o cargo de diretor é transitório: hoje, ele "está" diretor, mas amanhã já poderá não "estar" mais (pode ser despedido).

Esse uso também procura demonstrar humildade do sujeito, como se a posição pudesse ser ocupada por qualquer um, que assim "estará" nela. Essa substituição do verbo ser pelo verbo estar é válida e correta?

Nessa situação, o verbo estar deve ser seguido por uma preposição específica ou pelo advérbio como (na função de preposição acidental, por exemplo, «estou como diretor»)?

Outra informação: no Houaiss, na acepção 1.2, o verbo ser é explicado como «[...] pred. ter ou apresentar-se em determinada condição ou situação, permanente ou temporária». Há alguma bibliografia que eu possa consultar para verificar a questão da diferença de usos dos verbos ser e estar nesse contexto?

Resposta:

Não há erro gramatical em «Estou diretor» (ou «Estou como diretor»).

A substituição de ser por estar é uma decisão estilística. Com efeito, o verbo estar passa a ensejar outro sentido, associado a possíveis intenções discursivas já bem esclarecidas pelo consulente.

Quanto à possível noção de estado transitório do verbo ser, isso é um valor semântico subjacente, mas não evidente e essencial, pois «Sou diretor» implica (primeiro) a ideia de um estado permanente – é o que o indivíduo é, profissionalmente; ou seja, é o cargo que ocupa. No entanto, como alguém não será diretor toda a vida nem o é 24h por dia, pode-se compreender nesse contexto que o estado é transitório. Obviamente o sentido está longe de ser o mesmo que «Estou diretor», pois aqui se indica, com clareza, a ideia de transitoriedade marcada intencionalmente pelo enunciador, com todos aqueles desdobramentos retóricos já esclarecidos pelo próprio consulente.

Infelizmente desconheço um trabalho acadêmico que trate exclusiva e especificamente desses usos. Contudo, pode ser que a dissertação a seguir amplifique sua visão a respeito dos diferentes valores semânticos dos verbos ser e estar:

Rita Maria Nunes Ribeiro, Sobre a semântica dos verbos "ser" e "estar" em Português, Universidade do Porto, 2021(

Pergunta:

«O livro é interessante, o autor, inteligente, e o leitor, estúpido.»

Eu poderia usar este para me referir ao leitor, esse para me referir ao autor e aquele para me referir ao livro, da seguinte forma?

«Contudo, este é humilde, esse, arrogante, e aquele, enfadonho.» Além disso, seria possível inverter a ordem? Como se dá a combinação de tais pronomes quando os três estão na mesma frase? E se eu só falasse do autor e do leitor, poderia combinar este e esse em vez de este e aquele?

Obrigado!

Resposta:

Na função distributiva dentro do texto, os pronomes demonstrativos a ser usados são apenas este(a/s), isto (para o último referente anteriormente mencionado) e aquele(a/s), aquilo (para o primeiro referente anteriormente mencionado). Nesse contexto, não se usa esse(a/s), isso, segundo a norma-padrão do português brasileiro. Sendo assim, com dois elementos já mencionados, há duas possibilidades de construção:

1. O autor é inteligente, e o leitor é estúpido. Contudo, este é humilde e aquele é arrogante.

2. O autor é inteligente, e o leitor é estúpido. Contudo, aquele é arrogante e este é humilde.

Já a frase com três elementos anteriores não poderia ser reescrita com pronomes demonstrativos (este, para o último elemento mencionado; esse, para o elemento do meio; aquele, para o primeiro elemento mencionado). Tal sugestão de retomada não é abonada por nenhum gramático normativo academicamente consagrado. A sugestão que se dá nesses casos, portanto, é o emprego de numerais ordinais*:

– O livro é interessante, o autor, inteligente, e o leitor, estúpido. Contudo, o primeiro é enfadonho; o segundo, arrogante; e o terceiro, humilde.

Sempre às ordens!

*Por ser brasileiro o consulente, foi empregada a nomenclatura gramatical brasileira na resposta.

Nota: Conheço somente um gramático normativo não academicamente consagrado (

Pergunta:

Na frase «Nossos parentes são muito leais para serem nossos acusadores», o termo «para serem nossos acusadores» é agente da passiva?

Oração subordinada completiva nominal? Oração subordinada adverbial final?

Obrigado.

Resposta:

Dos gramáticos normativos tradicionais, quem responde a esta questão é Domingos Paschoal Cegalla.

Segundo ele, quando a preposição para equivale a «a ponto de», introduz uma oração subordinada adverbial consecutiva.

Logo, a frase «Eles são muito leais para serem nossos acusadores» equivale a «Eles são muito leais a ponto de serem nossos acusadores», em que para/a ponto de serem nossos acusadores não é um termo, e sim uma oração subordinada adverbial consecutiva reduzida de infinitivo.

Não poderia funcionar como agente da passiva, pois esta função sintática não é introduzida pela preposição para, e sim pela preposição por. Também não poderia funcionar como complemento nominal, pois o adjetivo leal não exige complemento oracional. Por fim, não poderia ser adverbial final, pois não exprime nenhuma noção de finalidade.

Sempre às ordens!
 
* Por ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura gramatical brasileira.

 

Língua x estilo: sabe a diferença?
Sistema linguístico e escolhas individuais

«A LÍNGUA é o guarda-roupas: um sistema vasto, flexível, pleno de possibilidades. Já o ESTILO é a escolha feita dentro desse sistema – escolha que varia conforme o lugar, o tempo, a intenção, a identidade de quem fala.»

São palavras do gramático brasileiro Fernando Pestana a  respeito das diferenças entre o português europeu e o português do Brasil, interpretadas à luz da distinção entre língua e estilo. Apontamento publicado no mural do autor no Facebook em 1 de maio de 2025 e aqui transcrito com a devida vénia.