Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
Fernando Pestana
9K

Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se o deslocamento do predicativo, da seguinte oração, para o início desta, desfaria a ambiguidade:

«Ela deixou a plateia emocionada.»

Resposta:

Supondo que o sujeito da frase seja uma cantora a fazer um espetáculo, a construção "Ela deixou a plateia emocionada" apresenta, pelo menos, duas possíveis leituras sintático-semânticas*:

I. A cantora estava emocionada quando se retirou do palco.

Sendo esta a leitura, o termo "emocionada" será analisado (na frase original) como um predicativo do sujeito.

II. Por causa de alguma atuação/desempenho da cantora, a plateia ficou emocionada.

Sendo esta a leitura, o termo "emocionada" será analisado (na frase original) como um predicativo do objeto.

Logo, se o termo "emocionada" fosse deslocado para o início da frase (Emocionada, ela deixou a plateia), poder-se-ia aplicar a ela as leituras feitas em I (predicativo do sujeito) e em II (predicativo do objeto), pois esse adjetivo pode se referir ao sujeito — leitura mais imediata — ou ao objeto — leitura menos imediata, mas igualmente possível.

A prova de que se aplica a leitura III é a seguinte: se substituíssemos "a plateia" por "os fãs", a frase — já com o termo deslocado — ficaria gramatical: "Emocionados, ela deixou os fãs". Trata-se dum deslocamento pouco comum, mas não incorreto.

Uma forma de desfazer a ambiguidade é a colocação do adjetivo entre vírgulas, logo após o sujeito: "Ela, emocionada, deixou a plateia". Neste caso, funcionaria apenas como predicativo do sujeito.

Sempre às ordens!

 

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário (por razões de clareza didática) usar a metalinguagem teórica tradicional existente no atual ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

Na oração «ele realmente fez um gol à Pelé», o «à Pelé» pode ser craseado subentendendo-se a palavra moda, ele realmente fez um gol à moda (ao jeito) de Pelé, como ocorre na expressão «móveis à Luís XIV»?

Obrigado

Resposta:

Sim. O raciocínio está correto.

A crase ocorre obrigatoriamente em construções assim, segundo nos ensina Celso Pedro Luft em seu livro "Decifrando a Crase", quando figura um adjetivo ou um nome próprio qual núcleo da locução, a saber:

– Filé à milanesa (à moda milanesa)

– Frango à parmegiana (à maneira parmegiana)

– Bacalhau à Gomes de Sá (à moda de Gomes de Sá)

– Gol à Pelé (à maneira de Pelé)

Por essa razão é que não há crase em "frango a passarinho" ou em "bife a cavalo" — afinal, passarinho e cavalo não são adjetivos nem nomes próprios nessas expressões.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Na frase «Muitos foram derrotados por haver ambição desmedida no coração», o termo «por haver ambição desmedida no coração» é agente da passiva? Ou oração subordinada adverbial causal? Ou qual a função sintática do termo?

Obrigado.

Resposta:

Há dupla possibilidade analítica*, sendo mais imediata a leitura como "oração subordinada adverbial causal reduzida de infinitivo":

Por qual motivo muitos foram derrotados?

Por causa disto: havia ambição desmedida no coração deles.

No entanto, não parece haver impedimento para a leitura da oração em análise como agente da passiva, uma vez que, na voz ativa, a oração passa (com gramaticalidade) a funcionar sintaticamente como sujeito da frase: «Haver ambição desmedida no coração derrotou muitos (indivíduos)», ou, numa paráfrase com objeto direto preposicionado: «Haver ambição desmedida no coração derrotou a muitos.»

Assim, a oração «por haver ambição desmedida no coração» pode funcionar sintaticamente como adjunto adverbial ou agente da passiva.

Sempre às ordens!

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário (por razões de clareza didática) usar a metalinguagem teórica tradicional existente no atual ensino de gramática no Brasil.

 

Pergunta:

Na frase «As crianças se disciplinam logo cedo», vocábulo se é pronome reflexivo ou partícula apassivadora?

Já a frase na «A menina se cortou», o vocábulo se é pronome reflexivo com a função de objeto direto? Ou partícula apassivadora?

Como diferenciar partícula apassivadora de pronome reflexivo com a função de objeto?

Obrigado!

Resposta:

A depender do sentido depreendido pelo contexto, pode-se interpretar o primeiro se de duas maneiras* – ora como (1) partícula apassivadora, ora como (2a) pronome reflexivo [ou (2b) reflexivo recíproco]:

(1) «As crianças se disciplinam logo cedo» > «Disciplinam-se as crianças logo cedo» > «As crianças são disciplinadas logo cedo».

Cabe dizer que a ordem normal do termo que funciona como sujeito na voz passiva sintética («as crianças»«) é após o verbo («Disciplinam-se as crianças...»); mas não se pode ignorar a possibilidade, menos comum, da ordem inversa desse termo, anteposto ao verbo.

(2a) Cada uma delas disciplina a si mesma, individualmente — nesse sentido, o se é pronome reflexivo; ou elas disciplinam a si mesmas, reciprocamente   nesse sentido, o se é pronome reflexivo recíproco.

No que diz respeito ao segundo se, o valor é reflexivo: «ela cortou a si mesma». Assim, o se funciona como objeto direto.

Um clássico critério distintivo entre o se apassivador e o se reflexivo é a paráfrase. No caso do apassivador, passa-se a frase para a voz passiva analítica; havendo gramaticalidade e manutenção do sentido original, chega-se à conclusão de que o se pode receber a classificação de apassivador («Motivou-se o aluno» = «O aluno foi motivado»). No caso do reflexivo, acrescenta-se a expressão reflexiva «a si mesmo» («Motivou-se o aluno» = «O aluno se motivou» = «O aluno motivou a si mesmo»).

Sempre às ordens!

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário usar não só os recursos didáticos (como a paráfrase explicitando a sinonímia frasal reflexiva, dentro dos padrões normativos brasileiros) como também a metalinguagem teórica tradicional exis...

Pergunta:

Na oração «Criei um grupo no Whatsapp com meus amigos desempregados», qual a função sintática de «com meus amigos desempregados»?

Tinha pensado que poderia ser adjunto adverbial de companhia, mas o ato de criar não ocorreu na companhia dos amigos, pois apenas a pessoa (no contexto do qual retirei a oração) que criou o grupo. Logo, esse «com meus amigos desempregados» funcionaria como uma especificação do grupo criado...

Desde já, obrigado!

Resposta:

Se o sentido da frase já está bem delimitado – consoante se verifica na explicação apresentada na própria pergunta –, então a única resposta correta para a função sintática de «com meus amigos desempregados» é, segundo a nomenclatura gramatical brasileira*, a seguinte: adjunto adnominal.

A prova disso é que – reitero: segundo o sentido já delimitado pelo próprio consulente –, se transpusermos para a voz passiva analítica essa construção de voz ativa, o termo «com meus amigos desempregados» estará diretamente conectado ao núcleo do sintagma nominal «um grupo no WhatsApp com meus amigos desempregados», a saber: grupo. Veja:

– «Criei um grupo no Whatsapp com meus amigos desempregados.» (voz ativa)

– «Um grupo no WhatsApp com meus amigos desempregados foi criado por mim.» (voz passiva analítica)

Ainda se apegando ao mesmo sentido já delimitado pelo próprio consulente, outro critério é o apagamento de «no WhatsApp», para que se evidencie mais claramente a relação sintática entre grupo e «com meus amigos desempregados»:

– «Criei um grupo com meus amigos desempregados.» («Um grupo com meus amigos desempregados foi criado por mim.»)

Observe, portanto, que a locução «com meus amigos desempregados» se relaciona sintaticamente com o nome grupo. Portanto, funciona como adjunto adnominal.

Sempre às ordens!

 

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário (por razões de clareza didática) usar a metalinguagem teórica tradicional existente no atual ensino de gramática no Brasil.