Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A palavra dicionário pertence à classe dos nomes comuns, ou dos nomes comuns coletivos?

Resposta:

Segundo o Dicionário de Nomes Coletivos (Lisboa, Europa-América, 2006), de Fernanda Carrilho, e Nos Garimpos da Linguagem (Rio de Janeiro, Liv. São José, 1959) , de Luiz Autuori e Oswaldo Proença Gomes, dicionário é um nome coletivo, uma vez que designa «conjunto de vocábulos ou de palavras de uma língua».

Se tivermos como referência o Dicionário Terminológico, nome comum coletivo é todo o «nome que se aplica a um conjunto de objetos ou entidades do mesmo tipo», verificamos que essa classificação corresponde à da chamada gramática tradicional que inclui nessa subclasse dos nomes comuns aquele que «no singular, designa um conjunto de seres ou coisas da mesma espécie» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 178).

Ora, a palavra dicionário designa um «livro de referência onde se encontram as palavras e expressões de uma língua, por ordem alfabética, com a respetiva significação ou tradução para outra língua e ainda, por vezes, com certas características fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto editora, 2019).

Confrontando estes elementos, poderemos colocar as seguintes questões: se um dicionário é um livro que tem a particularidade de conter o conjunto de palavras de uma língua, não é, portanto, um conjunto de palavras de uma língua. Que nome se poderá dar ao conjunto de palavras de uma língua? Não é, decerto, um livro que as reg...

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, que se apontassem três figuras de estilo no poema abaixo. Nele pode-se considerar que o "verso" citado pelo sujeito poético retrate um amor não correspondido, ou apenas retrataria a difícil arte de compor um poema?

Versilusão

Quando me vencia a solidão,

Um estranho lampejo surgiu

Quando todo sonho era vão,

O quase-nenhum virou mil

 

Nascido em trevosa canção,

Um verso, uma imagem sutil,

Rebelde como poucos o são,

Alegre como os ares de abril

 

Tomei-o nos lábios, vacilante

A voz trêmula, na ilusão imerso,

Queria muito ouvi-la altissonante

 

Igualando, porém, o ato perverso

Do mais fútil e pérfido amante,

Deixou-me só o fingido verso.

Resposta:

No poema transcrito, para além da anástrofe (ou inversão), há várias figuras de estilo, destacando-se as seguintes:

— personificação, em «me vencia a solidão», «um verso rebelde/alegre»

— oxímoro e hipérbole, em «O quase-nenhum virou mil»

— sinestesia, na 3.ª estrofe, em «Tomei-o nos lábios», «a Voz trémula / queria muito ouvi-la altissonante», pois sugerem-se aí várias sensações: a do tato e a do paladar («Tomei-o nos lábios, vacilante»), assim como a da audição («A voz trémula / ouvi-la altissonante»).

— aliteração, na 4.ª estrofe, em que sobressai a repetição de sons sibilantes e desagradáveis («perverso/, do mais til e pérfido / Deixou-me o fingido verso»), carregado de marcas negativas.

O jogo entre solidão, canção, verso e amante, fazendo apelo aos sentidos, e sugerindo a instabilidade de sensações — desânimo, entusiasmo, entrega, deceção e perda —, confere um ritmo ondulante, tal como uma melodia, ao texto: de ascensão progressiva (até final da 3.ª estrofe) para decair repentinamente com a consciência da perda (do fingimento do verso = futilidade do amante).

Assim, hábil e intencionalmente, o sujeito poético mistura, associando, o verso (fruto da canção) e o amante/amado, surgindo um como reflexo do outro. Da vertigem alucinante da euforia passa, velozmente, à queda na frieza da desilusão.

Pergunta:

Queria explicar, de uma forma simples e clara, aos meus alunos, porque é que os verbos ter e dar são irregulares.

Resposta:

Para que os alunos se apercebam da particularidade dos verbos irregulares (neste caso, dos verbos ter e dar), penso que será importante que eles compreendam e, consequentemente, se consciencializem dos aspetos que os diferenciam dos verbos regulares das mesmas conjugações (por exemplo, vender e cantar).

Pensando numa aula interativa, começaria por lhes perguntar as formas de vários tempos dos verbos cantar e amar/dançar (1.ª conjugação), levando-os a registarem-nas no quadro/caderno/computador, para que as visualizem, sublinhando as respetivas terminações — ou, segundo a atual terminologia linguística, os sufixos de tempo-modo da flexão verbal — (atividade que pode ser proposta para ser distribuída por pares ou pequenos grupos). Através da apresentação desta tarefa, os alunos verificam que todos estes verbos se conjugam da mesma forma, de acordo com as terminações.

Após a consciencialização desta realidade, confrontá-los-ia com o verbo dar, sugerindo-lhes o mesmo tipo de trabalho, mas usando uma espécie de jogo/pedagogia do erro, em que se faria apelo ao seu uso da língua. Por exemplo: «Agora eu... canto, eu danço, eu amo, eu... (dar) um abraço ao meu amigo» e escrevem-se no quadro as formas do presente do indicativo de dar, colocadas ao lado das dos verbos regulares da 1.ª conjugação.

Os alunos verão, facilmente, que a sua terminação é diferente da dos outros. E, assim, compreenderão que os primeiros são regulares e classificarão dar como irregular, porque não segue o modelo dos outros, é diferente.

Quando ao verbo ter, poderá fazer algo semelhante, partindo de verbos regulares da 2.ª conjugação como vender

Pergunta:

No Brasil utilizamos não raramente o diminutivo de história. A grafia correta é historieta embora quase não seja utilizada. Diz-se comummente historinha, como se fosse paroxítona, ou seja, sílaba tônica -ri- e ainda a sílaba -to- aberta (tó)...

Como seria a grafia adequada dessa palavra, já que se fala?!

Vida longa ao Ciberdúvidas!

Resposta:

Os termos historinha, historiazinha, historiazita e historita são, de facto, diversas formas de diminutivos da palavra história, a par de historieta.

São estas as grafias corretas, conforme a regra geral da formação do grau diminutivo dos nomes/substantivos: «mediante o emprego dos sufixos diminutivos -inho(a), -zinho(a), -ito(a), -zito(a). Segundo Cunha e Cintra, embora a forma tipicamente portuguesa seja -inho(a), «verifica-se uma preferência na linguagem culta pelas formações com -zinho(a), no intuito de manter íntegra a pronúncia da palavra derivante» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 199).

Tal como o consulente indica, historinha é paroxítona, com sílaba tónica em -ri- e, habitualmente, pronuncia-se com o de to aberto, decerto para procurar manter os sons da palavra original. Passa-se o mesmo com as formas historiazinha, historiazita e historita.

Pergunta:

Ao resolver uma questão duma prova aferida de treino para o 4.º ano, tive dúvidas na resposta correta, uma vez que alguns alunos deram várias respostas.

Na prova, a questão vinha assim:

«Lê a seguinte frase: "A cesta vinha cheia de carapaus frescos."

Reescreve a frase, colocando o adjetivo no grau superlativo absoluto sintético.»

A maioria dos alunos identificou o frescos como sendo o adjetivo e escreveram «fresquíssimos», mas outros tantos identificaram a palavra cheia como sendo o adjetivo.

Qual é de facto a classificação morfológica da palavra cheia?

E como devia ser reescrita a frase?

Resposta:

Cheia1, neste caso, é, de facto, um adjetivo (tal como vazia), pois designa «repleta, completa, compacta, carregada, coberta, rica, farta». Repare-se que é bastante comum usar-se este adjetivo a qualificar/caraterizar algo ou alguém: «O prato está cheio», «A despensa ficou cheia», em contraste com o seu antónimo vazio(a) — «A minha carteira está vazia».

Por isso, como adjetivo que é, pode ser flexionado nos diferentes graus. No grau superlativo absoluto sintético, a forma estabelecida é cheiísima (dobrando o i), pois o superlativo absoluto sintético «forma-se pelo acréscimo ao adjetivo do sufixo -íssimo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 258). E, no caso particular dos adjetivos terminados em -io (-ia, no feminino), repete-se o i inicial do sufixo -íssimo, uma vez que, ao se retirar a vogal final — o(a) —, a palavra mantêm o i que o antecedia. São exemplos deste caso: seriíssimo, necessariíssimo e, também, cheiíssimo.

No entanto, a supressão do duplo i está a genelarizar-se, o que também se encontra assinalado pelos gramáticos Cunha e Cintra como observação a ser tida em conta: «Em lugar das formas superlativas seriíssimo, necessariíssimo e outras semelhantes, a língua atual prefere seríssimo, necessaríssimo, com um só i» (idem, p. 260). Portanto, aceita-se também, a par da tradicional seriíssima, a forma seríssima.

Assim, a frase deve ser re...