Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostava de saber se é correcto dizer «Não vale de nada fazeres isso», «Isso não adiantou de nada» e «Vou fazer de tudo para conseguir o que quero».

Resposta:

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), da Academia das Ciências de Lisboa, regista a expressão «não valer/servir de nada» com o sentido de «dar em nada». Portanto, se tal expressão se encontra contemplada por um dicionário, sem indicação de uso especial, isso significa que está atestada como genericamente correta, fazendo parte do uso.

Uma vez que «não adiantar» é sinónimo de «não valer/servir», depreende-se que o mesmo se pode dizer sobre a correção da frase «Isso não adiantou de nada».

Relativamente à terceira frase — «Vou fazer de tudo para conseguir o que quero» — parece-nos que se trata de um caso em que se adaptou o sentido de «fazer» a «ser capaz de tudo», uma vez que o sentido é o mesmo: «estar disposto a aguentar tudo e todas as consequências».

Pergunta:

1 – «Ela ameaçou-me com uma faca.»

2 – «Ela ameaçou-me que partia o serviço de porcelana Vista Alegre.»

A segunda frase suscita-me uma dúvida. Será que «ameaçou-me» implica uma acção contra a integridade do visado? Será que se deve escrever: «Ela ameaçou que partia o serviço de porcelana Vista Alegre»?

Resposta:

O verbo ameaçar tem vários sentidos:

— amedrontar: «O ladrão ameaçou as vítimas»;

— perigar: «A praga ameaçava as colheitas»;

— anunciar: «As nuvens ameaçam chuva», «As rachas do edifício ameaçam o desabamento»;

— tencionar: «As suas atitudes ameaçam o rompimento», «A rapariga ameaçava despedir-se, mas desistia sempre».

Portanto, na primeira frase — «Ela ameaçou-me com uma faca» —, sobressai o valor de «amedrontar» [«ameaçar com/de = amedrontar»], estando implícita a ideia de intenção de agressão (com uma arma, uma faca).

Quanto à segunda frase, a forma mais correta é «Ela ameaçou-me de que partia o serviço de porcelana Vista Alegre», na qual sobressai o sentido de «anunciar (para amedrontar)».

Assinale-se que o Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007) prevê que o verbo ameaçar possa ter por complemento uma oração finita: «A mãe ameaçou que, se não estivessem sossegados, lhes dava um castigo.» E, confirmando o que atrás se disse, o mesmo dicionário mostra que este verbo também admite um complemento direto seguido de um complemento oblíquo ou preposicional, introduzido por com ou de, no sentido de «amedrontar», muito embora não indique que esse complemento integre uma oração: «O sindicato ameaçou a entidade patronal com comum processo»; «O patrão ameaçou o empregado de despedimento com justa causa». Mesmo assim, o verbo ameaçar afigura-se compatível com complemento direto (na segunda das frases apresentadas, o pronome me, o objeto da ameaça) e um complemento preposicional em que se inclui uma oração (a situação que é concretização ...

Pergunta:

No Auto da Barca do Inferno, [de Gil Vicente], nomeadamente na cena do Onzeneiro, o recurso estilístico presente na expressão «me deu Saturno quebranto» é a metáfora, ou o eufemismo?

Resposta:

Não há dúvida de que é um caso de eufemismo, uma vez que nos apercebemos de que com a expressão «me deu Saturno quebranto» nos encontramos perante a figura definida por Massaud Moisés como uma «espécie de perífrase mediante a qual, por motivos religiosos, éticos, supersticiosos ou emocionais, se atenua o sentido rude ou desagradável de uma palavra ou expressão, através da substituição por outra de sentido agradável ou menos chocante» (Sebastião Cherubim, Dicionário de Figuras de Linguagem, São Paulo, Pioneira, 1989, p. 34).

Na frase em questão, o onzeneiro utiliza uma perífrase (expressão mais longa) em que ameniza a palavra morte.

Pergunta:

Poderiam me explicar se a frase «O povo estourou de tanto rir» é uma metonímia, ou uma metáfora?

Resposta:

Na frase «O povo estourou de tanto rir» sobressai, em primeiro lugar, a hipérbole — «figura de pensamento que engrandece ou diminui exageradamente a verdade da coisas», Sebastião Cherubim, Dicionário de Figuras de Linguagem, São Paulo, Pioneira, 1989, p.38) —, uma vez que é aí evidente, através da presença da forma verbal «estourou», «a amplificação […] por excesso» (E-Dicionário de Termos Literários) da realidade, como forma de representar uma situação invulgar que se destaca pela explosão comum do riso, espontânea e incontrolável.

Para além da hipérbole, «estourou de tanto rir» transfere a sensação forte do som contínuo produzido pelas gargalhadas coletivas do povo (para além da visualização da imagem dos movimentos descontrolados de uma multidão à gargalhada), razão pela qual se revela a presença da sinestesia, a figura que se caracteriza pela «evocação de impressões sensoriais através da palavra» (Dicionário de Figuras de Linguagem, ob. cit., p. 62).

Relativamente à dúvida apresentada pelo consulente sobre a presença da metonímia ou da metáfora, importa debruçarmo-nos sobre o que caracteriza uma e outra. Segundo o Dicionário de Literatura (dir. Jacinto do Prado Coelho, II vol., Porto, Figueirinhas, 1979), as duas resultaram de associações, mas, «é indispensável notar que a metonímia se trata de um caso de uma associação por contiguidade e não por semelhança — como é o caso da metáfora». Assim sendo, se tivermos em conta que a metonímia é a «figura pela qual se designa uma realidade por meio de um termo referente a outra que está objectivamente relacionada com a primeira», apercebemo-nos de que tal relação é, portanto, «externa e objectiva». A metonímia surge, também, no Dicionário de Termos Li...

Pergunta:

Na frase «Avó, vou dar uma volta por aí», qual o ato ilocutório? Assertivo, ou declarativo?

Resposta:

«Avó, vou dar uma volta por aí» é uma frase assertiva em que é evidente «o valor de verdade da proposição expressa» (M.ª Helena Mira Mateus et alii, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 74), a posição/atitude de segurança que «o locutor tem em relação ao universo em referência e do tipo de controlo que com ele mantém» (idem, p. 75), o que transparece pela afirmação feita. É, portanto, um ato ilocutório assertivo em que «o locutor compromete a sua responsabilidade sobre a existência de um estado de coisas e sobre a verdade da proposição enunciada» (Dicionário Termiológico).

Não se trata de um caso de um ato declarativo, porque este tipo de ato ilocutório (o de uma declaração) «não descreve a posição do locutor (como um ato ilocutório assertivo) nem implica condições de sinceridade (como os atos ilocutórios diretivos, compromissivos e expressivos)» (Gramática da Língua Portuguesa, ob. cit., p. 79). Um ato declarativo distingue-se dos restantes atos ilocutórios pelo facto de «colocar diretamente o locutor em termos de poder criar a realidade [...], ou seja, uma declaração só é entendida como tal se for proferida pelo locutor cujo estatuto permite a criação do estado de coisas enunciado» (idem). Por exemplo, uma frase só é uma declaração (ou um ato ilocutório declarativo) se for proferida por alguém que preside a uma sessão [ex.: «A sessão está encerrada»], por um um juiz [ex. «O réu é inocente»], por um conservador ou um padre [ex.: «Declaro-vos marido e mulher»], por um professor [ex.: «O aluno não está preparado para ir a exame»], por um médico [ex.: O doente precisa de ser internado»].

Ora, a frase apresentada não é um ato declarativo, em que «o locutor, mediante a realização com êxito do seu ato de fala, modifica o estado ...