Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de colocar uma dúvida sobre o plural do nome composto matéria-prima. O Dicionário Houaiss indica como plural matérias-primas mas considerando que o primeiro termo é condicionado pelo segundo tal como em couve-flor que admite no plural couves-flor e couves-flores, o plural da palavra matéria-prima não pode também realizar-se em matérias-prima?

Muito obrigada.

Resposta:

À semelhança do nome composto obra-prima, cujo plural é obras-primas, em que «o primeiro elemento é um substantivo, e o segundo é um adjectivo, ambos tomam o sinal de plural» (José Nunes Figueiredo e António Gomes Ferreira, Compêndio de Gramática Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1965, p. 96), a palavra  matéria-prima forma, também, o plural do mesmo modo — matérias-primas.

É essa, também, a opinião de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002), que nos confirmam que «geralmente ambos os elementos tomam a forma de plural quando o composto é constituído de dois substantivos, ou de um substantivo e um adjectivo (amor-perfeito → amores-perfeitos, água-marinha → águas-marinhas, vitória-régiavitórias-régias)» (p. 189).

Relativamente à questão apresentada pela consulente sobre a possibilidade de matéria-prima poder fazer o plural da mesma forma que couve-flor, importa lembrar que, embora as duas palavras se enquadrem num processo de composição morfossintáctica, a realidade de cada uma delas é diferente, o que condiciona a flexão em número, conforme nos afirma o Dicionário Terminológico quando nos recorda que «a estrutura destes compostos depende da relação sintáctica e semântica entre os seus membros, o que tem consequências para a forma como são flexionados em número». Porque, enquanto os elementos de composição da palavra couve-flor são dois substantivos/nomes (o que pode criar situações em que um dos elementos seja mais «forte/importante» do que o outro...

Pergunta:

No poema Trapo, de Álvaro de Campos, qual o significado do verso «Até amaria o lar, desde que o não tivesse»?

Resposta:

Importa lembrar que não se pode isolar um excerto, ou mesmo uma só palavra, de um texto literário, porque o seu sentido está intimamente ligado à totalidade do discurso poético.

Fazendo parte do 7.º verso da 2.ª estrofe — «Hoje quero só sossego. Até amaria o lar, desde que o não tivesse» — do poema Trapo, a frase «Amaria o lar, desde que não o tivesse» parece, à primeira vista, absurda, insólita, o que nos pode levar a considerá-la um paradoxo ou, usando a terminologia literária, um oxímoro. E talvez se deva à estranheza que tal frase provoca em qualquer leitor a dificuldade que a consulente sente em a interpretar.

Temos, em primeiro lugar, de ter em conta a forma como é iniciado o verso em que essa frase está inserida — «Hoje quero só sossego» —, uma frase assertiva, em que o sujeito poético evidencia claramente o seu desejo, que se resume a uma única vontade, o que está explícito pelo advérbio restritor : sossego. Ora, essa atitude de «sossego» pressupõe a total ausência de inquietação, perturbação, ansiedade, ou seja, o não envolvimento em qualquer tipo de situação diferente da habitual. Aí está nitidamente expresso o desejo de entrega a uma passividade absoluta, a um estado tal de quietude  e de anulação de reacção que o leva(ria) a aceitar, a fazer concessões em relação a todo o tipo de situações, mesmo as mais improváveis, como é o caso da de «amar o lar».

E, para realçar a ideia de excepcionalidade da concessão, o sujeito poético introduz essa frase com o advérbio até, preocupando-se em marcar bem a ideia de que «amar o lar» se encontraria no domínio do hipotético, de algo não real, pois utiliza a forma do condicional amaria, sem deixar de evidenciar que a existência de tal se...

Pergunta:

Qual será a grafia correta a adotar para o termo da culinária que descreve batatas cortadas muito fininhas, como palha, e fritas: "batata-palha", ou "batata palha"? Por favor, expliquem-me o seu posicionamento.

Muito obrigado.

Resposta:

O emprego do hífen, embora tenhamos consciência de que se trata de «simples convenção» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 66), é, quase sempre, objecto de dúvidas e, muitas vezes, não há concordância entre os gramáticos e os linguistas sobre a mesma situação. Mas o caso apresentado pelo consulente não gera dúvidas e não sofre alterações com o Acordo Ortográfico de 1990.   

Tratando-se de um caso de composição em que os dois elementos são unidades autónomas (palavra + palavra = substantivo + substantivo), usa-se o hífen na formação da palavra. Portanto, a grafia desse termo de culinária é batata-palha.

Pergunta:

Pesquisei "desfinanciamento" em alguns bons dicionários e não encontrei tal palavra. É correto empregá-la, ou deve-se dizer "não financiamento"?

Obrigada!

Resposta:

De facto, o termo "desfinanciamento" não se encontra dicionarizado nem nos dicionários mais recentes nem nos mais antigos, assim como não se encontra registado nas obras de referência sobre o vocabulário da língua portuguesa, quer das resultantes do Acordo Ortográfico de 1945 — de que são exemplo o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), de F. Rebelo Gonçalves (Coimbra, Atlântida Editora), e o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), F. Rebelo Gonçalves (Coimbra, Coimbra Editora) —, quer das que incorporam as actuais mudanças do Acordo Ortográfico de 1990: o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2008), da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Porto Editora, e o Vocabulário Ortográfico do Português (2010), do Instituto de Linguística Teórica e Computacional. 

A segunda proposta apresentada — «não financiamento» — será, portanto, a correcta.  

Poder-se-á especular sobre a grafia mais exacta para esse termo, uma vez que nos tem sido levantada, frequentemente, a questão sobre o uso, ou não, do hífen em palavras compostas com o advérbio não. Sobre este assunto, há já várias respostas que indicam que a hifenização não é obrigatória, embora haja uma ...

Pergunta:

Gostava de saber qual a origem etimológica da palavra estética e o que significava na altura.

Recorri a diversos dicionários e enciclopédias e encontrei respostas diferentes.

Antecipadamente grato.

Resposta:

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (4.ª ed., vol. II, Lisboa, Livros Horizonte, 1987), o nome/substantivo estética deriva «do francês esthétique», que, por sua vez, vem «do grego aisthêtiké, forma do adjectivo aisthêtikós», que significa «que tem a faculdade de sentir ou de compreender; que pode ser compreendido pelos sentidos».

Por sua vez, o Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno, (3.º vol., São Paulo, Edição Saraiva, 1965), remete a origem deste substantivo feminino que designa «filosofia da arte» e «filosofia do belo» para o «grego aisthétiKos, em forma feminina». Acrescenta ainda que esse termo foi «introduzido por Baumgarten (Aesthetica, 1750)».

A atestação mais antiga da palavra é de 1833, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, e de 1841, de acordo com  o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (ob. cit.), que a atribui a Alexandre Herculano, na obra Monge de Cister, cap. 21: «para cujo consolo vieram à terra as bruxas, a therapeutica, os fundos publicos... a esthetica, a peta e o palavreado.»