Pergunta:
Adoro línguas, na medida em que elas nos permitem levar o uso da linguagem até um campo bem mais esclarecedor e emotivo. No entanto, odeio gramática. Na minha opinião, escrever bem é um dom, e é desnecessário o classicismo exagerado das palavras com o intuito de avaliar a capacidade descritiva de alguém, uma vez que os seus significados nada têm que ver com a classe a que pertencem, isto é, não importa se, por exemplo, amar é um verbo, importa, sim, se quem o escreve sabe o seu significado e como aplicá-lo. Uma vez dada a conjectura dessa premissa, pouco importa o restante.
Portanto, a minha questão é: qual o vosso ponto de vista dada esta afirmação, e em que visão se centrava o Fernando Pessoa, bem como outros grandes escritores (dado que muitos deles nunca frequentaram escolas e grandes colégios, e, no entanto, isso não funcionou como um impedimento ao seu desenvolvimento e afirmação intelectual)?
Resposta:
A tomada de posição da consulente em relação à utilidade da gramática é algo que, apesar de parecer paradoxal — porque afirma que gosta de línguas e que «escrever é um dom» —, não nos surpreende. Porque é muito comum (sobretudo, para os professores de Português) ouvir-se precisamente perguntas do tipo: «Para que é que eu preciso de saber que amar, pensar, dizer são verbos e não nomes/substantivos, adjectivos, advérbios ou conjunções? Se eu uso bem as formas verbais quando falo ou escrevo, porque é que eu preciso de identificar que «eu fiz» está no pretérito perfeito do indicativo? O que importa é que eu fale ou escreva correctamente!»
Esse questionar o valor da gramática, assim como a aversão manifestada por muitos em relação a esse domínio dos estudos do Português, deve-se, essencialmente, ao facto de grande parte de tais falantes não sentir dificuldades no uso adequado da língua, revelando à-vontade tanto a nível do discurso oral como do escrito. Decerto que esse domínio da língua não foi adquirido ao acaso. Chama-se a esse «dom» saber intuitivo, que é fruto das aprendizagens que se foram fazendo, a partir de um determinado universo de referência, desde que se iniciou o contacto com a língua, resultante da reprodução do que se foi ouvindo do discurso dos pais e das pessoas com que se conviveu. Ora, se o ambiente em que se for criado se caracterizar pelo domínio a nível linguístico, é natural que a criança interiorize a estrutura correcta da língua e a utilize nas interacções verbais, revelando competências e saberes que foram adquiridos de forma implícita. Como é que se pode explicar o uso adequado de determinadas formas verbais bastante complexas por crianças de 3 ou de 4 anos, em fase pré-escolar, como, por exemplo, «Consigo» como resposta a uma questão do tipo «Consegues fazer isto?», em vez de seguir o modelo da construção de um verbo regular...