Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Adoro línguas, na medida em que elas nos permitem levar o uso da linguagem até um campo bem mais esclarecedor e emotivo. No entanto, odeio gramática. Na minha opinião, escrever bem é um dom, e é desnecessário o classicismo exagerado das palavras com o intuito de avaliar a capacidade descritiva de alguém, uma vez que os seus significados nada têm que ver com a classe a que pertencem, isto é, não importa se, por exemplo, amar é um verbo, importa, sim, se quem o escreve sabe o seu significado e como aplicá-lo. Uma vez dada a conjectura dessa premissa, pouco importa o restante.

Portanto, a minha questão é: qual o vosso ponto de vista dada esta afirmação, e em que visão se centrava o Fernando Pessoa, bem como outros grandes escritores (dado que muitos deles nunca frequentaram escolas e grandes colégios, e, no entanto, isso não funcionou como um impedimento ao seu desenvolvimento e afirmação intelectual)?

Resposta:

A tomada de posição da consulente em relação à utilidade da gramática é algo que, apesar de parecer paradoxal — porque afirma que gosta de línguas e que «escrever é um dom» —, não nos surpreende. Porque é muito comum (sobretudo, para os professores de Português) ouvir-se precisamente perguntas do tipo: «Para que é que eu preciso de saber que amar, pensar, dizer são verbos e não nomes/substantivos, adjectivos, advérbios ou conjunções? Se eu uso bem as formas verbais quando falo ou escrevo, porque é que eu preciso de identificar que «eu fiz» está no pretérito perfeito do indicativo? O que importa é que eu fale ou escreva correctamente!»

Esse questionar o valor da gramática, assim como a aversão manifestada por muitos em relação a esse domínio dos estudos do Português, deve-se, essencialmente, ao facto de grande parte de tais falantes não sentir dificuldades no uso adequado da língua, revelando à-vontade tanto a nível do discurso oral como do escrito. Decerto que esse domínio da língua não foi adquirido ao acaso. Chama-se a esse «dom» saber intuitivo, que é fruto das aprendizagens que se foram fazendo, a partir de um determinado universo de referência, desde que se iniciou o contacto com a língua, resultante da reprodução do que se foi ouvindo do discurso dos pais e das pessoas com que se conviveu. Ora, se o ambiente em que se for criado se caracterizar pelo domínio a nível linguístico, é natural que a criança interiorize a estrutura correcta da língua e a utilize nas interacções verbais, revelando competências e saberes que foram adquiridos de forma implícita. Como é que se pode explicar o uso adequado de determinadas formas verbais bastante complexas por crianças de 3 ou de 4 anos, em fase pré-escolar, como, por exemplo, «Consigo» como resposta a uma questão do tipo «Consegues fazer isto?», em vez de seguir o modelo da construção de um verbo regular...

Pergunta:

Na frase «Rosana conheceu Eduardo antes de mim», cabe dizer que a única interpretação possível é que «Rosana o conheceu antes de conhecer a mim»? Ou haverá a possibilidade de interpretar que «Rosana o conheceu antes de eu conhecê-lo»?

Obrigado.

E feliz Natal a todos os colaboradores de Ciberdúvidas!

Resposta:

A equipa do Ciberdúvidas agradece e retribui, embora tardiamente (mas sempre a tempo...), os votos de boas festas e de um feliz 2010.

A frase que nos apresenta é, de facto, ambígua. Porque, na verdade, permite as duas leituras formuladas pelo consulente: 1. a de Rosana ter conhecido Eduardo antes de conhecer o autor da frase; 2. a de Rosana ter conhecido Eduardo antes de o autor da frase o ter conhecido.

Este é um dos muitos casos em que se joga com o poder das construções que, aqui, se deve ao facto de o autor ter concentrado orações temporais infinitivas – que seriam introduzidas pela locução prepositiva/conector temporal «antes de» – numa expressão mais restrita: substituiu essas frases (sujeito + predicado + complemento directo) por um sintagma preposicional («antes de» + «mim»).

O que gerou tal ambiguidade foi o uso da locução prepositiva «antes de», que permite os dois tipos de construções:

– Sintagma preposicional com valor temporal – «antes de» + nome/pronome/advérbio («antes do almoço, antes de mim, antes de amanhã»): «Tenho de estar de volta antes das  sete horas» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 560).

– Oração temporal infinitiva, como se pode ver nos seguintes exemplos: «Antes de seguir, hei-de escrever-te outra vez»; «Antes de chegar lá, parou e voltou-se para mim com as mãos a tapar a boca» (idem).

Se, por outro lado, o autor tivesse optado por ter usado o conector de base adverbial «antes que», que implicaria a construção de uma oração temporal finita com o verbo no conjuntivo – como é caso da frase «Antes que eu me aperc...

Pergunta:

Vi dois tópicos no Ciberdúvidas sobre este assunto e nenhum me esclareceu no que preciso.

Será correcto falar de «audição pública» e de «audiência privada»? E por isso se usa «audição parlamentar» mas «audiência com o primeiro-ministro»?

Terá que ver com a relação entre audição e auditoria, como estabelecida neste tópico?

É que pressinto o conceito de auditoria em «audição parlamentar», mas não (necessariamente) em «audiência com o primeiro-ministro»...

Obrigado.

Resposta:

Para se chegar a alguma conclusão sobre as questões apresentadas, não podemos deixar de verificar o que nos dizem os dicionários sobre tais palavras. Importa não nos esquecermos de que tanto audição como audiência e, também, auditoria têm origens etimológicas muito semelhantes – auditione-, «acto de ouvir, audição», audientia-, «atenção dada a palavra, acto de dar atenção», audittore-, o que escuta, auditor», respectivamente (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1990) –, do que se pode inferir que pertençam à mesma família de palavras e que todas pressuponham a ideia de «acto de ouvir» (alguém ou os responsáveis por determinada instituição).

Sobre audição, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004), apresenta-nos várias perspectivas para o seu valor: «(do latim auditionem-, audiência»): 1. Acto de ouvir ou de fazer ouvir; 2. percepção dos sons pelo ouvido; 3. Auscultação; 4. Depoimento oral de testemunhas.»

Por sua vez, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), dá-nos os seguintes significados para audição: «(do latim auditio, -onis) 1. Percepção dos sons pelo ouvido; sensação auditiva; 2. Acção de ouvir (O juiz só poderá pronunciar-se depois da audição de todas as testemunhas); 3. Sessão pública de música, de canto ou de declamação = recital...

Pergunta:

As questões que apresento têm basicamente que ver com o mais correcto significado a atribuir às palavras queixa e reclamação, designadamente para efeito do seu emprego no contexto de um sítio Internet de um serviço público responsável por funções de autoridade do Estado.

Afigura-se-me que a palavra queixa deva ser usada para significar as circunstâncias em que um particular, dirigindo-se ao órgão ou serviço da administração do Estado competente em razão da matéria ou facto em questão, se reporta às consequências na sua esfera privada resultantes da acção ou omissão de terceiro e demanda a correspondente intervenção da autoridade com poder jurisdicional para que actue em conformidade.

Diferentemente, parece-me que a palavra reclamação deva ser empregada para significar as circunstâncias em que o também particular se dirige ao órgão ou serviço da administração do Estado competente em razão do foro, só que desta vez para exigir, reivindicar ou protestar em relação a uma acção ou omissão tida pela referida entidade no exercício dos poderes de autoridade em que está investida, a qual gerou impacto na esfera dos seus interesses privados.

Eis, pois, o âmbito e teor das dúvidas que apresento.

Resposta:

Embora usemos, com bastante frequência, no nosso dia-a-dia, os dois termos – queixa e reclamação –, como formas de reacção, de resposta, a situações em que nos sintamos atingidos, injustamente, por actos de incorrecção, de impropriedade verbal, de abuso de poder, enfim, de todo o tipo de atitudes com as quais nos sentimos agredidos e desrespeitados, a verdade é que cada uma dessas palavras representa realidades diferentes e não deve ser utilizada arbitrariamente. E a dúvida apresentada pelo consulente deve-se, precisamente, ao facto de tanto um termo como o outro poderem ser confundidos, porque se vulgarizaram.1

Embora saibamos que se trata de termos do foro jurídico, verifiquemos, em primeiro lugar, o que nos dizem os dicionários.

Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004), a palavra queixa, para além de «acto ou efeito de se queixar; lamúria; lamentação; motivo de ressentimento; querela», designa, também, «exposição de agravos a uma autoridade para pedir reparação», o que faz sugerir o conceito de «queixa-crime», termo do domínio do direito que, por sua vez, designa a «participação de uma ocorrência, da iniciativa de um particular, a uma autoridade policial ou judicial, o que dá origem a um processo criminal».

Por sua vez, a reclamação («do latim reclamationem, grito de desaprovação») é o «acto ou efeito de reclamar; protesto; queixa; reivindicação ou exigência. A nível do direito, designa a «impugnação da decisão junto do próprio órgão que a proferiu».

Tendo em conta estas explicações, parece-nos que o consu...

Pergunta:

Diz-se na linguagem corrente «Mosteiro de Santa Clara-a-Velha». Mas, uma vez que o adjectivo se refere ao mosteiro, não deveria ser «Mosteiro de Santa Clara-o-Velho»?

Resposta:

A expressão «-a-Velha» está a caracterizar Santa Clara e não o mosteiro. Porque o elemento identificador do local, do espaço, é o nome da santa (o hagiónimo) — Santa Clara —, em honra da qual se erigiu o mosteiro. Acrescentou-se «-a-Velha» para se distinguir do mosteiro, do convento, da igreja ou do local de Santa Clara-a-Nova.

Repare-se que tanto Santa Clara-a-Nova como Santa Clara-a-Velha são, também, topónimos, «nome[s] de freguesia[s] da província do Alentejo e do distrito de Beja» (Eduardo de Noronha (dir.), Diccionario Universal Illustrado, vol. X, Lisboa, Torres Editores, s. d. p. 564), pertencendo, a primeira, «ao concelho e à comarca de Almodôvar» (idem) e, por sua vez, a segunda, «ao concelho e à comarca de Odemira» (idem).

Assim, importa lembrar que os adjectivos que formam um nome de um determinado espaço concordam, não com o tipo de lugar (aldeia, vila, mosteiro, convento, igreja, capela, praça, rua...), mas com o nome que identifica esse lugar, como se pode ver em Albergaria-a-Velha, Montemor-o-Novo, Montemor-o-Velho, Pinhal Novo, Linda-a-Velha, Linda-a-Pastora, Torres Novas, Torres Vedras, Alhos Vedros.