Importa lembrar que não se pode isolar um excerto, ou mesmo uma só palavra, de um texto literário, porque o seu sentido está intimamente ligado à totalidade do discurso poético.
Fazendo parte do 7.º verso da 2.ª estrofe — «Hoje quero só sossego. Até amaria o lar, desde que o não tivesse» — do poema Trapo, a frase «Amaria o lar, desde que não o tivesse» parece, à primeira vista, absurda, insólita, o que nos pode levar a considerá-la um paradoxo ou, usando a terminologia literária, um oxímoro. E talvez se deva à estranheza que tal frase provoca em qualquer leitor a dificuldade que a consulente sente em a interpretar.
Temos, em primeiro lugar, de ter em conta a forma como é iniciado o verso em que essa frase está inserida — «Hoje quero só sossego» —, uma frase assertiva, em que o sujeito poético evidencia claramente o seu desejo, que se resume a uma única vontade, o que está explícito pelo advérbio restritor só: sossego. Ora, essa atitude de «sossego» pressupõe a total ausência de inquietação, perturbação, ansiedade, ou seja, o não envolvimento em qualquer tipo de situação diferente da habitual. Aí está nitidamente expresso o desejo de entrega a uma passividade absoluta, a um estado tal de quietude e de anulação de reacção que o leva(ria) a aceitar, a fazer concessões em relação a todo o tipo de situações, mesmo as mais improváveis, como é o caso da de «amar o lar».
E, para realçar a ideia de excepcionalidade da concessão, o sujeito poético introduz essa frase com o advérbio até, preocupando-se em marcar bem a ideia de que «amar o lar» se encontraria no domínio do hipotético, de algo não real, pois utiliza a forma do condicional amaria, sem deixar de evidenciar que a existência de tal sentimento estaria intimamente ligada à certeza da impossibilidade da sua concretização.
Este jogo entre a verbalização de uma concessão e a sua anulação imediata — «desde que não o tivesse» — transparece a atitude irónica com que este sujeito poético encara o leitor e, naturalmente, a sociedade. Porque ele tem consciência do desconcerto que esta frase provoca no outro que a lê. Mas é precisamente essa a intenção deste sujeito poético: a de se afirmar como diferente, a de ostentar o seu desprezo pelas condutas e pelos códigos sociais, a de negar a sua identificação com os demais. Assim, o que para os outros é natural e desejável — ter um lar e amá-lo —, para ele, é algo desnecessário, inútil e, até mesmo, marca de infantilidade, de imaturidade.
Se analisarmos a estrofe seguinte, apercebemo-nos de que ele associa o carinho e o afecto às crianças, relegando a afectividade para o plano da imaturidade, da ingenuidade, de algo que não deseja para si e que despreza.