Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Para a fêmea do dromedário, haveria, porventura, a palavra "dromedária"?

Muito obrigado.

Resposta:

Da pesquisa que realizámos em gramáticas e em dicionários, concluímos que dromedário — classificado como «substantivo ou nome masculino» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001; Dicionário dos Nomes Deverbais) — é o nome de um animal que «possui um só género gramatical para designar um e outro sexo» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 196), pertencendo ao grupo dos nomes de animais denominados «substantivos/nomes epicenos» (idem). Assim, «quando há necessidade de especificar o sexo do animal, juntam-se então ao substantivo macho e fêmea» (idem), como são os casos de «crocodilo macho, crocodilo fêmea; o macho ou a fêmea do jacaré».

Portanto, dir-se-á, para se designar o feminino de dromedário, dromedário fêmea.1

1 Como anteriormente assinalámos, os termos fêmea e macho usam-se quer com hífen quer sem ele: no Brasil, favorece-se a hifenização (ver Dicionário Houaiss, s. v. macho), mas em Portugal essa tendência não está claramente documentada. Os vocabulários ortográficos até agora publicados, que seguem o novo Acordo Ortográfico, são omissos quanto a esta questão. O Vocabulário Ortográfico do Português regista designações de espécies botânicas nas quais ...

Pergunta:

Em «O vento batia os longos panos da sua saia, estalava as asas franjadas do seu xale», excerto do conto Sem Asas porém, da Marina Colassanti, ocorre qual(is) figura(s) de linguagem? O livro didático diz que há uma prosopopeia, mas não concordo. Ajudem-me, por favor.

Obrigada.

Resposta:

Para além da prosopopeia, há a metáfora e, até, marcas de sinestesia nesse excerto.

Considerando que prosopopeia, que «também pode ser designada por personificação», se trata de uma figura de pensamento dentro das figuras de expressividade cujo «processo consiste em atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais ou mortos» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 499), verificamos a sua presença em «o vento batia» e «estalava», uma vez que é atribuída vida ao vento.

Por outro lado, existe metáfora em «estalava as asas franjadas do xale», pois há aí a fusão de duas realidades sem o termo de ligação/comparação (as franjas do xale são como asas), insinuando o movimento ondulado das asas.

Por sua vez, as acções do vento na saia e no xale — «batia» e «estalava» —, para além do movimento que provocam na roupa da personagem, gerando sensações tácteis, sugerem também sons (sensação auditiva), o de bater e de estalar, o que nos permite dizer que nos encontramos perante um caso de sinestesia — «associação de palavras ou expressões em que ocorre combinação de sensações diferentes numa só impressão» (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, 2001), o que confere visualismo à narração.

Pergunta:

Ao ler um texto deparei-me com a palavra "reinforçar". Existe, ou é apenas um "reforço" à palavra reforçar?

Resposta:

Da pesquisa que realizámos em vários dicionários1, não encontrámos registado o vocábulo "reinforçar", do que se depreende que tal verbo não faça parte do nosso léxico. O facto de aparecer num texto português deve-se, decerto, a uma tentativa de adaptação do verbo inglês reinforce («reforçar»), tratando-se, portanto, de um aportuguesamento.

Relativamente à questão que nos apresenta sobre a possibilidade de tal termo ser um «reforço à palavra reforçar», a etimologia de reforçar dá-nos a resposta: re- é um prefixo latino designativo de «repetição, intensidade, reciprocidade e movimento para trás» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). Por isso, o verbo reforçar (re- + forçar) tem o sentido de «dar mais força a; tornar mais intenso; fortalecer; intensificar; reanimar» (idem).

Aliás, a própria tradução da palavra inglesa reinforce é reforçar, o que anula a necessidade de "reinforçar".

 

1 Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, São Paulo, Melhoramentos, 1998; Aurélio Buarque da Holanda, Novo Aurélio: o Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001; ...

Pergunta:

Tenho uma dúvida relacionada com a divisão de frases, se assim se pode chamar. Como não consigo explicar a minha dúvida teoricamente, fica uma pergunta prática. Posso escrever isto?

«Cheguei a casa cedo. E no entanto cheguei cansada. Ou mais cansada que ontem, pelo menos. Já amanhã espero chegar mais tarde. Mas menos cansada.»

Obrigada desde já.

Resposta:

Pode escrever o seu texto com frases curtas, embora isso não seja muito vulgar. Ao optar por usar frases simples — períodos com uma única oração —, cria a ideia de que cada uma dessas frases é independente da outra, marcando o seu valor ao separá-la da seguinte e da anterior com o ponto, sinal que pontuação que «assinala a pausa máxima da voz depois de um grupo fónico descendente» que «se emprega, pois, fundamentalmente, para indicar o término de uma ORAÇÃO DECLARATIVA, seja ela absoluta, seja a derradeira de um período composto» (Celso Cunho e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 646).

Apesar de ser um tipo de escrita pouco usual, a realidade é que não está incorrecta, e Cunha e Cintra justificam-no, no momento em que afirmam: «quando os períodos (simples ou compostos) se encadeiam pelos pensamentos que expressam, sucedem-se uns aos outros na mesma linha. Diz-se, neste caso, que estão separados por um PONTO SIMPLES» (idem). Tal prática tem sido, intencionalmente, adoptada por vários escritores actuais como forma de demarcarem bem o valor de cada frase, como nos explica Manuel Bandeira: «O ponto tem sido utilizado pelos escritores modernos onde os antigos poriam ponto-e-vírgula, ou mesmo vírgula. Trata-se de um eficiente recurso estilístico, quando usado adequada e sobriamente. Com a segmentação de períodos compostos em orações absolutas, ou com a transformação de termos destas em novas orações, obriga-se o leitor a ampliar as pausas entre os grupos fónicos de determinado texto, com o que lhe modifica a entoação e, consequentemente, o próprio sentido. As orações assim criadas adquirem um realce particular; ganham em afectividade e, não raro, passam a insinuar ideias e sentimentos, inexprimíveis numa pontuação normal e lógica» (Manuel Bandeira, Andorinha, Andorinha, Rio de Janeiro, José...

Pergunta:

É possível dizer que uma determinada visão ou leitura (da vida internacional) centrada no Estado é "estado-cêntrica"?

Obrigado.

Resposta:

Embora o termo estadocêntrico não esteja dicionarizado, a realidade é que se trata de uma palavra formada a partir de um processo de composição morfológica, uma vez que é composta por dois radicais: estad- e –cêntrico.

Ambos os radicais estão atestados, o primeiro, na palavra estadolatria — «estad(o) + -o- + -latria»; culto do poder estatal absoluto, geralmente em detrimento das liberdades individuais» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001) —, e o segundo, em adjectivos como teocêntrico  — «te(o)- + -cêntrico»; «que tem Deus como o ponto de convergência de tudo» (idem) —, antropocêntricoantrop(o)- + -cêntrico»; «que concebe a realidade na perspectiva do antropocentrismo» (idem) — e geocêntrico — «ge(o)- + -cêntrico»; «diz-se de qualquer sistema ou construção matemática que tenha como ponto de referência o centro da Terra» (idem).