Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

"Polimedicado" existe?

Resposta:

Da pesquisa que realizámos1, verificámos que o termo polimedicado não se encontra dicionarizado, apesar de poli- («elemento de composição culta que exprime a ideias de “muitos, vários, grande número, indefinido e elevado”»)2 e medicado (particípio do verbo medicar, «prescrever medicação, medicamentos; administrar ou ingerir medicamentos»)3 estarem atestados.

Se considerarmos os casos de palavras formadas com o elemento de composição poli- [«do grego poly- de polys, «numeroso; grande; alto; elevado; vasto; espaçoso; comprido; de grande valor» (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, IV, Lisboa, Horizonte, 1987)] — tal como «poliartrite (poli- + artrite), artrite generalizada a várias articulações», «policlínica (poli- + clínica), instituição médica onde se dão consultas de clínica geral e de diversas especialidades», «policlínico (poli- + clínico), médico que exerce a policlínica ou clínica geral», «policelular (poli- + celular), constituído por várias células», «policromático (poli- + cromático), de diversas cores», «polidesportivo (poli- + desportivo) diz-se de recintos que podem ser utilizados para a prática de diversas modalidades desportivas», «polifuncional (poli- + funcional), que pode desempenhar diversas funções» —, damo-nos conta de que se trata de palavras formadas com poli- + substantivo/nome ou adjectivo, o que confere ao nome ou adjectivo o valor de multiplicidade e de variedade. 

Ora, embora os particípios possam ser usados como adjectivos, o uso de "polimedicado" não se afigura adequado, quando se interpreta a associação semântica dos seus constituintesApesar de se dizer «ele está medicado», isso significa que a essa pessoa foi prescrita medicação, for...

Pergunta:

Relativamente à literacia científica, gostaria de saber qual das seguintes formulações é a correcta. Dizer: 1) um cidadão cientificamente literado; 2) um cidadão cientificamente literato; ou ainda 3) um cidadão cientificamente literatado.

Muito obrigada.

Resposta:

Dos três adjectivos que nos apresenta — literado, literato e literatado — só literato está dicionarizado, do que se depreende que esse é o único desses termos que tem legitimidade, a par de outra palavra com o mesmo valor que não é enunciada pela consulente — letrado.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2005), literato é um «cultismo, cujo divergente vulgar é letrado», pois as duas palavras têm o mesmo étimo latino, «litteratus, relativo às letras, instruído, sábio» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, 1990). Tanto uma como a outra podem ser adjectivos e/ou substantivos, e o seu sentido gira à roda do campo semântico da cultura, do conhecimento (sobretudo literário), do domínio de alguma área do saber. Por isso, literato e letrado significam1 «que ou aquele que possui muitos conhecimentos de literatura; aquele que cultiva a literatura; aquele que possui ou denota cultura; instruído; sábio; douto; erudito», tendo como antónimos «ileterato, ignorante, iletrado».

Portanto — e uma vez que os dicionários não registam literado nem literatado — concluímos que a formulação correcta é a 2.ª apresentada — «um cidadão cientificamente literato» — e também uma outra — «um cidadão cientificamente letrado».

 

1 Fontes: Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (1986), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2005), Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de L...

Pergunta:

Se falo um idioma quase que fluentemente, posso dizer que sou "semifluente" no tal idioma? A palavra "semifluente" é aceita na língua portuguesa? Se não, há algum adjetivo similar?

Resposta:

Se tivermos em conta o valor de semi- (do latim semi-, «metade»), «prefixo que exprime a ideia de meio, metade, quase» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004), assim como a existência de palavras como semiaberto, semiconsciente, semiprecioso, inferimos que é legítima a designação semifluente.

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, que a equipe do Ciberdúvidas me ajudasse; o que é a animalização (figura de linguagem)? Ela aparece muito no realismo brasileiro, mais explicitamente, nas obras de Aluísio Azevedo, como O Cortiço. Ela também aparece no realismo em Portugal?

Resposta:

Com o sentido de «ato ou efeito de animalizar(-se), de tornar-se animal», «processo de deslocar ou fazer deslocar alguém ao nível do animal irracional», «bestialização, embrutecimento», o termo animalização — associado ao francês animalisation (de meados do séc. XVIII), segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) — está registado no Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa (1963), de Silveira Bueno, como um dos derivados do verbo animalizaranimalizar + -ção»).

O facto de a palavra animalização se encontrar atestada pelo Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves (1966), assim como o de estar dicionarizada1, não significa que seja uma figura de linguagem. Aliás, a nível da retórica e da estilística não existe figura de linguagem com essa designação. A mais semelhante é o animismo — que surge, muitas vezes, associado à personificação —, na medida em que este resulta da atribuição de características próprias dos seres animados a seres inanimados.2

Como aportuguesamento de uma palavra francesa — animalisation — de meados do séc. XVIII, é natural que tenha sido começada a utilizar em Portugal (e nos países de língua portuguesa) a partir desse século, uma vez que havia uma grande influência da cultura francesa nos espíritos cultos da época.

Como o realismo procura «mostrar a realidade tal como é e como deveria ser», o que implica um olhar atento e crítico da sociedade por parte dos escritores, é natural que este termo tenha sido utilizado por eles, porque transporta a carga negativa do embrutecimento humano. Sabemos que o poeta realista Cesário Verde usa, no poema Cristaliz...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a sua posição quanto aos termos consciencialização, termo que vi hoje pela primeira vez num texto português, e conscientização, palavra comum no Brasil e que prefiro por me ser familiar e ter uma sílaba a menos que a outra. Um dicionário brasileiro, o Aulete, não abona consciencialização, e um dicionário português registra os dois termos e diz que são sinônimos.

Muito obrigado.

Resposta:

Não há dúvida de que eu não conhecia o termo conscientização, pois o que tenho utilizado (e com frequência) é a palavra consciencialização, sempre que me refiro à tomada de consciência de qualquer realidade ou situação.

Por isso, foi com surpresa que me apercebi de que os dois termos — consciencialização e conscientização — se encontram atestados, pelo menos, por quatro dicionários de referência — o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (1986), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais e Silva (1999), o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2005) e o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, da Texto Editores (2007) — como sinónimos, para designar «acto, processo ou resultado de fazer com que se tenha a noção exacta, se tome consciência de um facto, de uma situação; acto ou efeito de consciencializar ou de se consciencializar».

Portanto, conscientização é mais uma palavra para acrescentar ao meu vocabulário.