Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devemos dizer objectivos "conflituantes", ou "conflitantes"? Em matéria de "conflitualidade", ou "conflituosidade"?

Muito obrigado.

Resposta:

Somente o Novo Aurélio XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa (1999), o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (assim como a correspondente versão electrónica) e o Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998) atestam a palavra conflitante [de conflitar + -nte] como «adjetivo de dois gêneros» para designar «colidente; contraditório; oposto; incompatível; contrário; inconciliável; que está em conflito», dando como exemplos, precisamente, «objectivos conflitantes» e «sentimentos conflitantes». É indicada, portanto, como palavra derivada do invulgar verbo conflitar, «estar em oposição; colidir».

Os restantes dicionários que consultámos1 não registam nenhum dos termos que nos apresentou — conflitante e "conflituante", ocorrendo apenas os termos conflito, conflitual, conflitualidade, conflituosidade e conflituoso(a).

1  Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001); Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004); Dicionário da Língua Portuguesa , da Verbo (2006).

Pergunta:

É correcto usar ambos com o verbo na 1.ª pessoa do plural, ou só se dever usar com a 3.ª pessoa do plural?

Ex.: «Ambos vamos ao teatro no sábado.»
«Ambos vão ao teatro no sábado.»

Obrigada.

Resposta:

Ambos e ambas — quer enquanto «pronomes indefinidos invariáveis ou como adjectivos, indo neste caso o substantivo precedido por um artigo, um possessivo ou um demonstrativo» (Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1998., p. 402), quer como quantificadores (Mira Mateus et al., Gramática de Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 194) ou como «numerais  cardinais [pois substituem os cardinais os dois, as duas]» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 368) —, ocorrendo com a função de sujeito, implicam o uso do verbo/predicado na 1.ª («nós») ou na 3.ª pessoa («eles» ou «elas») do plural.

 

Reparemos nos seguintes exemplos:

«Ambos fizeram este trabalho.»/«Ambas fizemos este trabalho.»

«Ambas as filhas se parecem com a mãe.»/«Ambas nos parecemos com a nossa mãe.»

«Ambas as cunhadas ajudam a sogra.»/«Ambas ajudamos a nossa sogra.»

«É preferível lermos ambos pelo mesmo livro.»/«É preferível lerem ambos pelo mesmo livro.»

Pergunta:

Tenho sempre muitas vezes dúvidas quanto à acentuação correcta de palavras gregas em português. As minhas dúvidas actuais são como dizer as seguintes palavras: "Átrida" ou "Atrida"; "Artémis" ou "Ártemis"; "Heráclito" ou "Heraclito".

Tenho a certeza de que há muitos mais pares como estes que já me causaram dúvidas noutras alturas, mas estes são os exemplos de que me lembro. Agradecia se me pudessem esclarecer, e ainda mais se me pudessem dar uma regra para o caso geral.

Resposta:

Segundo o Vocabulário da Língua Portuguesa, de F. Rebelo Gonçalves, as formas correctas para essas palavras de origem grega são: Atrida (p. 130), Ártemis (p. 116) e Heraclito (esta com a indicação de que é «inexacta a acentuação Heráclito»; p. 524).

Quanto a regras, elas existem no tocante às formas portuguesas de nomes em grego antigo, mas, como o próprio consulente mostra, existem muitas variantes e excepções devido à tradição de formas irregulares, frequentemente resultantes da influência das formas francesas e inglesas desses nomes. Convém transcrever o que M.ª Helena T. C. Ureña Prieto et al. assinalam em Do Grego e do Latim ao Português (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995, pág. 11):

«Regra geral e tradicional é a de supor sempre, real ou teoricamente, os nomes recebidos por mediação do latim e aplicar-lhes a regra de acentuação latina. Deste modo serão graves ou paroxítonos os polissílabos que tenham a penúltima sílaba longa; serão esdrúxulos ou proparoxítonos os que tenham a penúltima sílaba breve.

«Nos dissílabos, o acento recai na primeira sílaba. Oxítonos derivados do latim são apenas os monosílabos ou os polisílabos que perderam a última sílaba átona, como, por exemplo, Ajaz, em latim Aiacem, acusativo de Aiax. [...]

«Além disso, às regras gerais de acentuação o uso também se encarregou de abrir excepções, e é em vão combatê-las quando já profundamente radicadas. De qualquer modo, os vocabulários e dicionários terão de indicar a norma, podendo facultativamente registar a variante consagrada pelo uso, esclarecendo qual é a forma preferível. Assim, indicar-se-á como forma correcta

Pergunta:

Gostaria de saber a origem da expressão «ser meio belga».

Resposta:

Não encontrámos qualquer registo da expressão «ser meio belga» nos dicionários nem na bibliografia1 específica das expressões populares e das frases feitas que consultámos.

No entanto, graças ao consulente Luís Cardoso, a quem agradecemos o esclarecimento enviado, obtivemos a seguinte informação: «Antigamente, não era raro ouvir alguém rotular outro de belga: "fulano é belga ou meio-belga!" Pretendendo dizer com isso que se tratava de uma pessoa muito pouco fidedigna ou finória, no sentido menos edificante do vocábulo.

Qual a raiz da expressão? Desconheço. E os que me podiam explicar já não pertencem a este mundo, feliz ou infelizmente.

Apenas posso futurar que talvez isso se relacione com os problemas e os atritos constantes, pelo menos no passado, entre os povos belgas e os seus governos.»

Apesar do contributo destes novos dados, não os poder confirmar em fontes bibliográficas idóneas.


1 Orlando Neves, Dicionário da Origem das Frases Feitas, Porto, Lello & Irmão, 1992; Orlando Neves, Dicionário das Frases Feitas, Porto, Lello & Irmão, 1991; R. Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e Curiosidades, São Paulo, Cultrix, s. d.); Vasco Botelho de Amaral, Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Porto, Ed. Domingos  Barreira, 1947; José Pedro Machado, Palavras a propósito de Palavras, Lisboa, Ed. Notícias, 1992; José Alves Reis, Provérbios e Ditos Populares, Lisboa-Porto, Litexa, 1996; Alexa...

Pergunta:

Gostaria que me fizessem o favor de esclarecer se o verbo transcrever se pode usar no sentido de «escrever tal e qual como se fala». É diferente da linguagem coloquial, e serviria, por exemplo, para uma afirmação no sentido pejorativo, como seja: «Este tipo não escreve, transcreve.»

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Transcrever significa «passar um texto oral a texto escrito ou copiar um texto escrito de um sítio para outro», razão pela qual a expressão «fazer a transcrição» é sinónima de copiar (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001).

A comprovar a legitimidade do uso deste verbo com o sentido de «escrever tal e qual como se fala», basta pensarmos na palavra transcrição, o substantivo usado para designar a «acção de reproduzir textualmente, copiando; acto ou efeito de transcrever», que ocorre com bastante frequência na expressão «transcrição fonética», em que se representam com «sinais fonéticos os fonemas ou sons de uma língua, com o maior rigor possível» (idem).

Ora, se transcrever pressupõe «copiar», implica que não há aí qualquer sinal de algo produzido por si próprio, de que quem transcreve se limita a usar o que foi feito/dito/escrito por outrem. É natural, pois, que, se alguém transcrever algum texto de outra pessoa e não mencionar o autor, estará a cometer plágio, a plagiar, a incorrer numa fraude.

Num contexto deste tipo, não há qualquer dúvida de que transcrever tem sentido pejorativo, porque é um acto condenável que revela a falta de honestidade de quem o pratica.