Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em textos escritos por mim (trabalhos e coisas similares), os professores corrigem-me quando escrevo «eles próprios» em vez de «eles mesmos» e vice-versa.

Mas qual a diferença, se a houver, e qual a regra para o seu uso?

(Aparte: creio até que o F. Pessoa dizia qualquer coisa sobre isto.)

Resposta:

A acompanhar o pronome sujeito, tanto pode usar mesmo como próprio.

Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, p. 289) classificam «as palavras mesmo e próprio [como formas de] realce do pronome sujeito», pois são usadas «para dar ênfase ao pronome sujeito», dando como exemplos as seguintes frases:

«– Tu mesmo serás o novo Hércules.» (Machado de Assis, OC, II, 548)

«Muitas vezes eu próprio me sinto ser o que ela pensa que eu sou.»

                                                                  (Augusto Abelaira, B, 129)

Para além de realce do pronome sujeito, mesmo faz parte, também, das «expressões reforçativas especiais» (idem, p. 282) que acompanham os pronomes pessoais com o objectivo de «remover a dúvida» em situações de ambiguidade.

É o que sucede nos casos em que «são idênticas as formas do pronome recíproco e do reflexivo com um sujeito plural» (i), em que se lhes «acrescenta, conforme a pessoa, as expressões a mim mesmo, a ti mesmo, a si mesmo, etc., para «marcar expressamente a acção reflexiva» (ii), como se pode verificar nos seguintes exemplos:

     i) «Joaquim e ...

Pergunta:

Gostaria de saber qual o correto: «fogão de lenha», ou «fogão a lenha», pois encontramos as duas opções. Qual a diferença entre vaivém e «vai e vem», uma vez que deparamos, sempre, com as duas?

Obrigada.

Resposta:

Relativamente à primeira questão apresentada sobre o uso das preposições a ou de em fogão a/de lenha, importa analisar a função das preposições.

Preposições são as palavras invariáveis que relacionam dois termos […], de tal modo, que o sentido do primeiro (antecedente: «fogão») é explicado ou completado pelo segundo — consequente — «lenha» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, p. 551).

Por sua vez, a relação que se estabelece entre as duas palavras ligadas por intermédio das preposições a e de, geralmente, implica a ideia de movimento ou de situação (espacial, temporal e nocional). Aqui, estamos perante um caso de uma relação de situação nocional, pois implica a da especificação das características do fogão, mais propriamente sobre a matéria que usa como fonte de calor.

Trata-se, portanto, de um fogão que trabalha/funciona ou que é movido a lenha, a matéria sem a qual não cumpre a sua função: aquecer ou cozinhar.

O uso de a, tão frequente nesta estrutura, deve-se precisamente ao facto de ser essa a preposição que esses três verbos – trabalhar, funcionar, mover – pedem (a regência) para designarem o material necessário. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências (2001), regista precisamente «fogão a gás», «fogão a lenha» para designar a fonte de calor que lhe permite cozinhar os alimentos.

A mesma fonte atesta o uso da preposição de para fogão nos casos em que especifica as características físicas do próprio aparelho, como, por exemplo, em...

Pergunta:

Gostaria de saber se, na expressão «turista de pé descalço», existe ou não um hífen a ligar as duas últimas palavras.

Agradeço a resposta desde já.

Resposta:

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), regista expressão «turista de pé-descalço» (hifenizada) como familiar e depreciativa para designar «o que tem poucas possibilidades financeiras».

A hifenização nessa expressão é atestada, também, pelo Vocabulário Ortográfico do Português do Portal da Língua Portuguesa (Instituto de Linguística Informática e Computacional – ILTEC), com as seguintes informações: «pé-descalço» (nome masculino) cujo plural é «pés-descalços».

N.E. – Numa perspetiva histórica, veja-se este apontamento sobre o «andar descalço» nas cidades portuguesas, e erradicado na década de 30 do século XX.

Pergunta:

«Para tu [ou ti?], que és notívago, vale conferir a chuva de meteoros que vai acontecer às três da madrugada.»

A interposição de oração subordinada adjetiva explicativa deixou-me com alguma dúvida quanto ao uso do pronome pessoal, reto ou oblíquo. Por favor, elucidem a questão.

Grato.

Resposta:

Como a frase que nos apresenta é iniciada pela preposição para, pode induzir-nos ao erro de se considerar que introduz uma oração final, o que implica o verbo no infinito fexionado ou não flexionado. Se se tratasse desse caso, então, o pronome pessoal seria o sujeito da frase, logo, um pronome recto — tu. Tratar-se-ia, então, de uma frase como a seguinte:

«Para tu, que és noctívago, conferires a chuva de meteoritos que vai acontecer no início da madrugada, vale a pena…»

Mas não é este o caso dessa frase, pois estamos em presença de um sintagma preposicional, e não de uma oração final.

Ora, são as formas oblíquas tónicas dos pronomes pessoais que, acompanhadas de preposição, formam este tipo de sintagma preposicional.

Assim, este SP, para ti,  é constituído pela preposição para e pelo SN (sintagma nominal) representado pelo pronome oblíquo ti:

«Para ti, que és noctívago, vale conferir a chuva de meteoritos…»

Vejamos os seguintes exemplos das duas estruturas, apresentados por Cunha e Cintra:

«Isto é para tu fazeres.»
«Isto é para ti.»
«Ele mandou um livro para mim.»
«Para eu ler este livro, ele mandou-mo.» 

Pergunta:

Morfologicamente, o que é a palavra seguinte? Um adjectivo, advérbio? Por exemplo: «Analisa os seguintes processos.»

Resposta:

A palavra seguinte é um adjectivo que, como um modificador do substantivo/nome, serve «para estabelecer com o substantivo uma relação de tempo, de espaço […]» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, p. 247), enquadrando-se nos adjectivos de relação. Como qualifica um substantivo, flexiona-se em número, género e grau, tomando a forma (singular ou plural, masculino ou feminino) do nome a que se refere: «o passo seguinte», «os seguintes aspectos».

Não se trata de um advérbio, pois «o advérbio é um modificador do verbo», e não do substantivo, razão pela qual não se flexiona.