Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No verso «esse vento que sopra e que ateia os incêndios», podemos considerar a existência de uma anáfora? E de uma assonância?

Obrigada pela ajuda!

Resposta:

Não há dúvida de que, no verso apresentado, há a repetição da conjunção que («esse vento que sopra e que ateia incêndios»), demarcando e evidenciando as particularidades das duas acções do vento, de modo que não se considere que a segunda seja a continuidade da outra, mas que uma é distinta da outra. Mas poder-se-á considerar essa repetição, no interior de um verso, uma anáfora? Se nos basearmos no conceito puro de anáfora, como a figura de retórica «que consiste na repetição de um mesmo termo no início de várias frases, criando um efeito de reforço e de coerência» (E-Dicionário de Termos Literários ), apercebermo-nos-emos de que esse caso não corresponde aos requisitos da anáfora. De facto, o termo que não é repetido no início de várias frases (aqui só há exemplo de um verso).

Relativamente à questão sobre a assonância, ou seja, a «repetição de sons vocálicos em sílabas tónicas ou em palavras que terminam com diferentes sons consonânticos» (idem), poderemos dizer que em «esse vento que sopra e que ateia os incêndios» se verifica a correspondência de sons vocálicos semelhantes, o que confere musicalidade ao verso e contribui para a criação de um ritmo sugestivo.

Pergunta:

Gostava de saber se estes são exemplos de hipálages (exemplos do Cap. I de Os Maias): «uma tímida fila de janelinhas», «fresco nome de vivenda», «paz dormente de bairro», «onde já desmaiavam as rosas das grinaldas».

Obrigado.

Resposta:

Os excertos — «uma tímida fila de janelinhas», «fresco nome de vivenda», «paz dormente de bairro» e «onde já desmaiavam as rosas das grinaldas» — são, de facto, exemplos de hipálage.

Nos três  primeiros, a hipálage ocorre a partir do valor sugestivo dos adjectivos — «tímida», «fresco» e «dormente» — que atribuem aos objectos («fila de janelinhas», «nome de vivenda» e «paz de bairro») características que pertencem a outros com os quais estão relacionados.

No último exemplo, a hipálage evidencia-se pelo recurso ao efeito sugestivo da forma verbal «desmaiavam», valorizando a impressão do movimento do desmaio e fazendo apelo à percepção do leve cheiro criado pela queda suave das pétalas das rosas das grinaldas.

Assim, cada um dos adjectivos está intimamente relacionado com as pessoas que habitam as casas presentes nas descrições — em «tímida fila de janelinhas» (o que é reforçado pelo diminutivo de janelas, como se o sujeito de enunciação quisesse passar a ideia de fragilidade e de timidez de alguém que aí vive); em «paz dormente de bairro», o adjectivo está, decerto, relacionado com a apatia e a passividade dos seus habitantes, como se fosse algo doentio, como se aquela «paz» não correspondesse a serenidade e a calma, mas a algo mais sombrio) — ou com o ambiente de frescura em que aquela vivenda está envolvida, insinuando a presença de árvores, de água, de sombras aprazíveis.

Por sua vez, a forma verbal «desmaiavam» para descrever o cair lento das pétalas das rosas das grinaldas, passando a sensação de lassidão, de fraqueza, de quebra de força e de vida, remete para a perda (de juventude, de alegria, de força interior, de abundância, de beleza...) da(s) pessoa(s) que as tinha(m).

Pergunta:

Começo por dar os parabéns a toda a equipa do Ciberdúvidas pelo serviço que prestam a quem, como eu, tantas vezes tem dúvidas.

Neste momento, a minha dúvida prende-se com a identificação do(s) recurso(s) expressivo(s) que poderemos detetar nas seguintes expressões (retiradas de Os Maias, de Eça de Queirós):

«o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida…»

«[Era alta, muito pálida, sobretudo às luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa,] um ar de romance e de lírio meio murcho» (aqui, apenas o que está fora dos parênteses).

Muito obrigada!

Resposta:

Na frase «O dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida», verificamos a presença de vários recursos estilísticos:

— a ironia (o dever de: primeiro, bela; depois, estúpida);

— a enumeração (na listagem das "qualidades"/deveres da mulher) e o polissíndeto («e depois ser...»);

— o paralelismo de construção (anáfora do verbo ser + adjectivo — «ser bela... ser estúpida)

— o disfemismo («ser estúpida»).

Por sua vez, na segunda frase — «[Era alta, muito pálida, sobretudo às luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa,] um ar de romance e de lírio meio murcho» —, o que sobressai é a metáfora (a afirmação «Um ar de romance» em vez da comparação «como um ar de romance» e «de lírio meio murcho»). Poder-se-á considerar marcas de disfemismo em «meio murcho», pois a imagem de beleza que se pretende dar com a metáfora de «ar de lírio» perde esse valor com a ideia de «meio murcho».

Pergunta:

Recorro imensas vezes ao vosso site para esclarecer as minhas dúvidas e fico elucidada, mas, desta vez, gostaria de mais um esclarecimento, pois continuo sem saber se posso considerar que, na fase seguinte, se encontra uma enumeração: «Tristeza, uma grande tristeza e uma dor muito forte.»

Fico grata pela vossa atenção.

Resposta:

Na frase «Tristeza, uma grande tristeza e uma dor muito forte» sobressai a necessidade do sujeito de enunciação em acrescentar à primeira palavra do seu texto — «Tristeza» —, que traduz o seu sentir no momento, o evoluir dos sentimentos que o dominam, evidenciando um crescendo — da tristeza para «uma grande tristeza» até ao grau de «uma dor muito forte». Para que tal fosse possível, foi adicionando e fazendo o inventário das alterações do seu estado interior, recorrendo ao assíndeto («uma grande tristeza») e ao polissíndeto («e uma dor muito forte»). Portanto, não há dúvida de que se trata da enumeração.

Verifica-se, também, a presença da gradação ou amplificação (no crescendo dos sentimentos), mas não podemos esquecer-nos de que estas figuras são, a rigor, enumerações.

Pergunta:

Gostaria de saber se no verso «E os olhos dum caleche espantam-me sangrentos», do poema Horas Mortas [Sentimento de Um Ocidental], de Cesário Verde, há uma personificação, ou uma hipálage, sobretudo na expressão «olhos sangrentos».

Obrigada!

Resposta:

Com o  adjectivo «sangrentos» para caracterizar os «olhos dum caleche», o sujeito poético pretende representar a impressão pura e imediata que tem e com que ficou do/da caleche1, sugerindo-nos a ilusão de óptica que as luzes da caleche lhe deixaram — a de uns olhos sangrentos, decerto, porque têm tonalidades avermelhadas que o incomodam, que o chocam e que o agridem na escuridão das ruas. A sugestão desagradável e violenta que as luzes deixam no sujeito poético, de tal forma inesperada e insólita, que o «espantam», é o que sobessai neste verso, valorizando-se a sensação de surpresa e de incómodo experimentada.

Portanto, trata-se de uma hipálage, em que se destaca o efeito criativo conseguido pela originalidade da construção, em que se tira partido da cor e da luminosidade num ambiente nocturno de contornos pouco definidos. Aqui, o que ressalta é a percepção com que se fica, obtida pela «atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionada» (Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia), em que o adjectivo expressa o sentir do sujeito.

Este é um exemplo de hipálage, e não de personificação, porque a personificação é explícita (uma vez que atribui, claramente, qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais) e não confere novos significados às palavras. Aqui, estamos perante um processo de valorização estilística em que se joga com o poder sugestivo da expressão «olhos sangrentos».

1 A palavra caleche é geralmente usada no género feminino. No entanto, ao longo da sua história, tem também ocorrido no masculin...