Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «hora do almoço» — «do almoço» é adjunto adnominal?

Resposta:

Tendo em conta que «do almoço» especifica (ou delimita) o significado do substantivo hora, podemos considerar que é um adjunto adnominal. Introduzida pela preposição de (de + o), esta expressão nominal — «do almoço» — especifica a localização temporal, um dos aspectos apontados por Maria Helena Moura Neves, em Gramática de Usos do Português (São Paulo, Ed. UNESP, 2002, pp. 660-662), como característicos do adjunto adnominal.

Nota: Ao conceito de adjunto adnominal associa-se, frequentemente, o de complemento nominal, ambos determinantes nominais, pois «os dois termos apresentam traços comuns, como: a) a posição à direita do núcleo; a existência de pausa; c) a introdução por preposição, obrigatória no complemento nominal e muito frequente no adjunto» (Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2009, pp. 452-453). Assim, ambos os termos participam das mesmas características, o que dificulta a identificação de cada um, distinguindo-se simplesmente pelo facto de o complemento nominal ocorrer como termo argumental, razão pela qual o complemento do nome não pode ser omitido facilmente. Aconselha-se, por isso, a leitura das respostas indicadas nos Textos Relacionados.

Pergunta:

Gostaria de saber se ambas as expressões estão correctas, mudando apenas a interpretação, ou só uma delas é válida e porquê:

— «qualquer limitação de horários»;

— «quaisquer limitações de horários».

Agradeço, desde já, a atenção dispensada.

Resposta:

As duas formas são legítimas e até podem ser sinónimas, porque qualquer — tal como todo (s), toda(s), ambos, cada e nenhum(a), nenhuns(nenhumas) — é um quantificador universal, isto é, um «quantificador que induz uma leitura do grupo nominal relativa a todos os elementos de um conjunto» (Dicionário Terminológico), razão pela qual a forma singular tem o mesmo valor que a do plural.

A única diferença entre as duas expressões reside nos sentidos (mais negativos e mais fortes) que o uso do plural do nome — limitações (o que implica a formação do plural de qualquer — «quaisquer limitações») — sugere, evocando imagens de falta de moderação e de total perda de restrições e de sentido de bom senso.

Pergunta:

Gostaria de saber se estas frases estão correctas:

«Carlos referiu ter conhecido Filipa num concerto e que só aceitara se casar para a ajudar a ser feliz.»

«Carlos referiu ter conhecido Filipa num concerto e que só aceitara casar-se para a ajudar a ser feliz.»

Obrigada!

Resposta:

Como se trata de um caso de uma estrutura complexa, onde se encaixa uma oração completiva de infinitivo — «casar-se» — seleccionada pelo verbo aceitar, o português europeu favorece a ênclise do pronome ao infinitivo, razão pela qual a segunda opção é a forma correcta em Portugal:

«Carlos referiu ter conhecido a Filipa num concerto e que só aceitara casar-se para a ajudar a ser feliz.»

 

Nota: No português do Brasil, a colocação dos pronomes átonos difere da portuguesa, remetendo para a realidade da língua medieval e clássica (Cunha e Cintra, pp. 317-318). Por isso, aceita as duas possibilidades, a próclise e a ênclise, para a grande maioria das situações, mas nota-se a preferência pela próclise, sobretudo na linguagem coloquial, o que se pode verificar nos seguintes exemplos retirados da Internet: «Que tal você aceitar se casar comigo agora?», «Porém, Bella aceita se casar com ele», «Demi Lovato aceita se casar com fã». Sobre a colocação dos pronomes átonos, aconselha-se a leitura de algumas respostas em linha: A colocação dos pronomes e as regras  e Os casos específicos de próclise.

Pergunta:

Qual a classe da palavra que em: «Pergunta àquela menina que coisa ela quer ter.» Há oração subordinada? De que tipo?

Obrigado.

Resposta:

Que é, neste caso, e segundo o Dicionário Terminológico (DT), um determinante interrogativo,  porque ocorre com um nome — «coisa» — numa construção interrogativa, permitindo a identificação do constituinte interrogado.

De facto, este que (com valor de qual — «qual coisa») introduz uma construção em que está implícita uma interrogação/pergunta formulada indirectamente, o que a integra no tipo de frase interrogativa indirecta.

No entanto, o conceito de tipos de frase distingue-se do de oração, apesar de os dois pertencerem ao domínio da sintaxe, e se referirem à mesma construção — «que coisa ela quer ter». Por isso, quanto à sua classificação no âmbito das orações, esta frase é uma oração subordinada substantiva completiva, porque é complemento directo do verbo da oração subordinante.

Uma vez que nesta resposta se interligam várias realidades linguísticas, considera-se pertinente citar alguns excertos, bastante esclarecedores, do DT, em que na explicitação do tipo de frase interrogativa se estabelece relação com as orações a que pode corresponder:

     [Dentro do] «(tipo de) frase interrogativa […], as interrogativas directas (Comeste a sopa?) podem ser frases simples, enquanto as interrogativas indirectas (O João perguntou [se comeste a sopa]) são subordinadas substantivas completivas.

Por sua vez, relativamente às orações subordinadas substantivas completivas, são-nos fornecidas as seguintes indicações:

     ...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado do fruto no seguinte verso, do poema As Mãos, de Manuel Alegre:

«E estão no fruto e na palavra/as mãos que são o canto e são as armas.»

Resposta:

Fruto e palavra são os dois termos que sobressaem — e que são evidenciados pelo sujeito poético — neste excerto, antecipando-se à frase/ao verso com que estão relacionados, afirmando o seu valor como realidades determinantes para a concretização do «canto» e das «armas».

Por isso, para se identificar o significado deste «fruto», teremos de analisar o contexto em que se encontra. Ocorrendo num texto poético construído em torno do valor expressivo das mãos — enquanto símbolo de acção/actividade e de poder — e como metáfora (e sinédoque) do Homem, o termo fruto adquire, aqui, outros sentidos, mas que estarão sempre associados a algo positivo, a concretização, a realização, a prazer, a pluralidade de sensações aprazíveis (o paladar, o olfacto, a visão e o tacto), enfim, a algo que tenha o dom de se poder saborear.

De facto, e se colocarmos os versos na ordem directa — «E as mãos que são o canto e são as armas estão no fruto e na palavra» —, apercebemo-nos de que «fruto» e «palavra» são os dois elementos que estão subjacentes à criação de duas realidades antagónicas, mas igualmente poderosas — a do «canto» (positiva) e a das «armas (negativa)» —, símbolos do poder criador (a palavra) e destruidor (arma) do ser humano, os dois eixos que atravessam todo o poema As Mãos — paz/guerra (v. 1), faz/desfaz (v. 2), poema/guerra (vv. 3-4), farpas/harpas (vv. 9-11).

Portanto, nestes versos, o sujeito poético confronta-nos com a complexidade do ser humano, pois tanto as mãos que fazem o canto/poema como as que fazem as armas/a guerra («as mãos que são canto e são armas») também têm a arte de construir/produzir algo saboroso, misto de alimento e de prazer («fruto»), assim como de comunicar («palavra).