D´Silvas Filho - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
D´Silvas Filho
D´Silvas Filho
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D´Silvas Filho, pseudónimo literário de um docente aposentado do ensino superior, com prolongada actividade pedagógica, cargos em órgãos de gestão e categoria final de professor coordenador deste mesmo ensino. Autor, entre outros livros, do Prontuário Universal — Erros Corrigidos de Português. Consultor do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não existem na língua portuguesa palavras com dois acentos gráficos. Creio que essa regra está bem estabelecida e confirmada.

Assim sendo, gostaria que algum dos consultores comentasse o fato de o recém-publicado VOLP da Academia Brasileira conter (e não é no capítulo de palavras estrangeiras) a palavra "enáuenê-nauê" adj. s. 2 g. s. m.; pl. "enáuenês-nauês" (página 310, terceira coluna da 5. edição) ("enáuenê-nauê" é o gentílico de uma tribo brasileira, creio).

Se atentarmos à primeira parte "enáuenê-" da palavra, surgem-nos dois acentos. Toda a palavra tem três acentos gráficos.

No VOLP da Academia, quarta edição (que pode ser consultado em linha no página Internet da Academia) o mesmo termo surge.

Será que o VOLP da Academia Brasileira está errado? Não seria antes "enauenê-nauê"? Ou escapa-me aqui alguma coisa?

Muitíssimo grato.

Resposta:

Esta palavra, assim grafada, não pode pertencer ao léxico das palavras portuguesas. O Brasil tem a língua portuguesa como oficial e respeita as regras do novo AO; logo não pode considerar portuguesa uma palavra que contraria as regras que ele próprio adoptou como oficiais. Efectivamente, na palavra em apreço, os dois acentos agudo e circunflexo marcam tónicas, o que é contra as regras.

Não conheço a ortoépia da palavra (não indicada no VOLP brasileiro); mas vou considerar duas hipóteses:

a) A pronúncia de enáuene- é proparoxítona; neste caso, se os ee se pronunciarem sempre semifechados e não semimudos como em Portugal, o acento no último e é desnecessário [enawene]. No caso de nauê, se apalavra fosse grave, escrever-se-ia naue, sem acentos [nawe].

b) A pronúncia de enauenê- é oxítona, então o acento no decrescente au é desnecessário para manter a fonia [aw]: [enawene]. Passa-se o mesmo em nauê [nawe], oxítona.

Concluindo, a ideia dos dois acentos em *enáuenê- foi certamente uma distra{#c|}ção, no desejo de sublinhar que se tratava do ditongo [aw] não [ɐw], este raro na língua (Base VII, obs.). Ou o desejo de incluir no léxico brasileiro uma palavra de idioma nativo, o que deveria ter sido assinalado como tal.

Com esta questão, o VOLP brasileiro levanta mais outro precedente, que terá de ser dirimido no dicionário comum futuro.

Ao seu dispor,

Pergunta:

Um Acordo traz bases que me parecem sugerir respeito aos países lusófonos. Todavia, quando diz assim: «Não é admissível o uso do apóstrofo nas combinações das preposições de e em com as formas do artigo definido, com formas pronominais diversas e com formas adverbiais» (Base XVIII, do Apóstrofo); ou «A propósito, deve observar-se que é inadmissível z final equivalente a s em palavra não oxítona: Cádis, e não Cádiz» (Base III, Da homofonia de certos grafemas consonânticos), não transformaria o que poderia ser uma prescrição em uma proscrição que fere o princípio de autonomia dos povos de cultura lusófona? Escrever, por exemplo, Cádis ou "Cádiz" não é, em se tratando de nomes próprios, uma opção de variação ortográfica dos falantes e escreventes da língua portuguesa?

Resposta:

No novo acordo também está registado (Base XXI): «Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registo legal, “adote” na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas ou títulos que estejam inscritos em registo público.»

A norma exige efectivamente a grafia Cádis, mas se alguém tem por apelido Cádiz, assim registado, pode manter esta grafia.

Tratando-se de um topónimo, convém que se escreva de acordo com a norma em vigor (que neste caso já vem de longe, quer para Portugal, quer para o Brasil). Aceito, porém, que haja alguma resistência, pois as normas ortográficas são transitórias em relação à história duma certa região. A cláusula citada não o inclui, mas penso que nos topónimos também deve haver tolerância, tanto mais que não é fácil andar a mudar todas as placas toponímicas ao sabor das mudanças na ortografia.

Ao seu dispor,

Pergunta:

O Acordo Ortográfico, de forma muito incisiva ou visceral, diz suprimir "inteiramente" o trema das palavras em língua portuguesa. Observamos tom severo quando o Acordo estabelece: «O trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido em palavras portuguesas ou aportuguesadas. Nem sequer se emprega na poesia, mesmo que haja separação de duas vogais que normalmente formam ditongo: saudade, e não saüdade, ainda que tetrassílabo; saudar, e não saüdar, ainda que trissílabo; etc.» Quer dizer nem mesmo no campo da poesia, terreno fértil da escrita e reescrita critiva do texto, o trema é aceito. Todavia, quando chega aos nomes próprios, isto é, o respeito às propriedade privada, no contexto de dominação político-econômica, suaviza assim: «Conserva-se, no entanto, o trema, de acordo com a Base I, 3.º, em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros: hübneriano, de Hübner, mülleriano, de Müller, etc.» (Base I, 3.º, do Acordo); ou mais adiante reafirma ainda: «Conserva-se, no entanto, o trema, de acordo com a Base I, 3.º, em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros: hübneriano, de Hübner, mülleriano, de Müller, etc.» (Observação, Base XIV, do Acordo).

Não são dois pesos e duas medidas para um Acordo que se propõe a tratar os desiguais (falantes ) como sendo iguais (cultura lusófona)?

Resposta:

Há muito tempo (desde 1945) que esta regra do novo AO é válida para Portugal, sem que tenhamos encontrado grandes problemas. Ser válido agora também para o Brasil enquadra-se no espírito de unidade na língua que se pretende com o novo AO. A perda do trema para o Brasil, nos poucos casos em que ainda se usava ou de outros sinais, é mínima, por exemplo, em relação à substancial perda das consoantes mudas que Portugal sacrifica à unidade, muito mais frequente num texto corrente.

Quanto à manutenção do trema em nomes próprios estrangeiros, os legisladores, que impunham a manutenção original da grafia (letras dobradas, etc.) não podiam, por uma questão de coerência isentar o trema dessa obrigação. Digamos que é uma excepção à regra. Ora de excepções estão as regras repletas; repare por exemplo no 2.º da Base X (7 excepções à regra geral… e ainda há mais…).

Ao seu dispor,

Artigo do nosso consultor D'Silvas Filho, inserido na sua página pessoal na Internet, onde volta a insistir na urgência de Portugal publicar também o seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa devidamente actualizado — condição "sine qua non" para a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, de forma "rigorosa e não oportunista".

 

Constou que o Governo quer que o novo Acordo Ortográfico (AO 1990) entre em vigor rapidamente para Portugal, e que será marcada uma data em Junho deste ano.

Pergunta:

Como português fiquei envergonhado. Temos de ser isentos e admitir. Bechara está inventando um novo acordo ortográfico com muita habilidade, mas ele tem razão em tudo. Presto a minha homenagem...

Com o tempo verifiquei que muitas das dificuldades do acordo ortográfico resultam de este estar incompleto. E ele está omisso porque a parte brasileira confiou na coerência e racionalidade do atual sistema português e não aprofundou. Eu não gostava do passado sistema brasileiro, mas ele era de regras relativamente simples e coerente. O mesmo não se pode dizer do atual sistema português. Acreditem ou não, apesar de toda a boa vontade notória brasileira, ele está a levar os gramáticos brasileiros à loucura... Vou deixar a conjugação de alguns verbos tirados do Priberam online. Eles dizem tudo...

Conjugação do verbo arguir (presente do indicativo)

arguo

argúis

argúi

arguimos

arguis

argúem

Conjugação do verbo construir (presente do indicativo)

construo

constróis

constrói

construímos

construís

constroem

Conjugação do verbo arguir (pretéri...

Resposta:

Há injustiça nas suas apreciações, como português, sobre o novo Acordo Ortográfico (AO). A verdade é que as mudanças no português europeu são muito mais significativas que no brasileiro. Em Portugal, inversamente, os opositores ao AO dizem que houve sujeição ao Brasil. Eu digo que houve cedências de parte a parte, para que possamos ter um dicionário comum.

Não percebi bem as suas objecções sobre os verbos que menciona. No verbo construir, nada mudou. No arguir, com exclusão do trema para o Brasil, escreveu-o tal qual se tem usado até hoje. O trema há muito que se dispensou em Portugal nas palavras portuguesas, da mesma maneira que muitas consoantes mudas foram dispensadas no Brasil.

Ora, quanto ao verbo arguir, eu é que faço algumas objecções na nova grafia recomendada pelo novo AO. De facto, argui («ele a.»), arguis («tu a.»), arguem («eles a.») deixam de ter acento. No meu ponto de vista, porém, no grupo gu ou no qu, o u, indissociável da consoante, ou é um símbolo que não se pronuncia ou tem o valor de semivogal quando não é tónico. É esta particularidade que não permite separar o u da vogal seguinte na translineação quando o u se pronuncia.

NO novo AO, assemelha-se a grafia de argúi à de intui, quando as características do grupo gu são peculiares, o que justifica a diferença entre, por exemplo, arguimos e intuímos (o novo AO tem delinquimos, logo será na nova regra arguimos, como tem sido sempre, incoerentemente porque se depreende que passa a ser arguís [vós], como delinquís [vós] no tex...