Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vi as vossas respostas relacionadas com a questão reserva o direito/reserva-se o direito, mas não estou satisfeito com elas.

Digam-me, por favor, como devo traduzir para português o seguinte início de frase em inglês: «XPTO reserves the right to change product features...»

Eu acredito que a seguinte forma é a correcta:

«A XPTO reserva o direito de alterar as características dos produtos...»

No entanto, as vossas respostas parecem indicar que o correcto seria dizer «A XPTO reserva-se o direito de alterar as características dos produtos...»

A XPTO não se está a reservar-se a si própria, nem pretende dizer explicitamente que está a reservar o direito para si própria (isso deve estar apenas implícito, dado que proporciona vários subterfúgios legais que as empresas consideram ser muito úteis). Quanto ao reservar o direito para si própria, também não vejo como a conjugação reflexa "reserva-se" (dado que o sujeito está imediatamente antes) poderia significar «reserva para si».

Sem sujeito/nome, não há dúvidas. A forma correcta é «Reserva-se o direito de admissão», por exemplo.

Obrigado.

Resposta:

No sentido de «atribuir», o verbo reservar é bitransitivo, isto é, selecciona um complemento directo e um complemento indirecto: «O Estado reserva aos pais o direito de intervirem nas escolas.» O verbo em apreço torna-se também reflexo quando a entidade que atribui (o sujeito) é também o beneficiário da atribuição (o complemento indirecto); daí «O Estado reserva-se o direito de intervir nas escolas» (atenção: não confundir esta construção com as construções de se apassivante ou impessoal). Há também a possibilidade de usar um complemento preposicional introduzido por para em lugar do complemento indirecto: «O Estado reserva para os pais o direito de intervirem nas escolas»; «O Estado reserva para si o direito de intervir nas escolas.»1

De qualquer modo, a expressão «reservar-se o direito» já ganhou foros de expressão fixa, como se pode verificar pelo seu registo no Novo Dicionário Lello Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa e no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa.

1 Sobre para em constituintes sintácticos que exprimem o beneficiário ou destinatário, ler a resposta Ainda a análise sintáctica de «Portugal é um país acolhedor para Ucranianos».

Pergunta:

Me deparei com uma frase que emprega os dois-pontos, e o sentido ficou obscuro pra mim, a frase é um verso da bíblia na versão Almeida revista e corrigida de 94, e a frase em questão é a seguinte:

«Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes?»

Minha dúvida é se o ponto de interrogação no fim da frase se refere a toda ela ou apenas ao período que vem depois dos dois-pontos. Disso, creio, depende a interpretação correta do sentido do texto. Se válido para toda a frase, implica em que o Espiríto em questão tem ciúme, e se válida a interrogação apenas para o que vem após os dois-pontos, esse período seria uma pergunta retórica sem necessidade de resposta.

Qual seria a forma correta de se interpretar essa frase?

Resposta:

Trata-se de um caso em que não há uma solução satisfatória, porque, por um lado, há a necessidade de marcar a entoação da frase introdutória, que é interrogativa, e, por outro, a frase citada é de tipo declarativo. O que se faz é pôr o ponto de interrogação no final de toda a sequência, fazendo inserir aspas entre o princípio e o fim da citação. Deste modo, a frase deverá ter o seguinte aspecto:

Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: «O Espírito que em nós habita tem ciúmes»?

Note-se que o ponto de interrogação está fora das aspas e indica assim que abrange toda a sequência gráfica que corresponde à frase. Acresce que outras soluções serão possíveis, sobretudo em edições mais antigas do texto bíblico.

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra "substitutibilidade" existe em português, porque não a consegui encontrar em nenhum dos dicionários que consultei. No entanto, parece-me ser um termo correcto para caracterizar algo que pode ser substituído, por exemplo: «Não sendo produtos substitutos, o grau de substitutibilidade entre obrigações e depósitos a prazo é elevado.»

 

Resposta:

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (versão brasileira) regista o adjectivo substituível, «que pode ser substituído», e, na entrada do antepositivo substitui-, a forma adjectival substitutível, com o mesmo significado. Nada impede que destes adjectivos se formem substituibilidade e um substantivo que está incluído entre as palavras constituídas por substitui-, substitubilidade. Estes termos significam, pois, «possibilidade de ser substituído».

Pergunta:

"Ifigênia", ou "Efigênia"?

Muito obrigado.

Resposta:

O Dicionário Onomástico Etimológico, de José Pedro Machado, acolhe as formas Ifigénia e Efigénia. Sobre a segunda forma, diz que se trata de «grafia inexacta, mas corrente, de Ifigénia».

Trata-se de um nome de origem grega — Iphigéneia — que passou ao português por intermédio do latim Iphigēnia e que significa «nascida forte». É o nome de uma figura da mitologia grega, acerca da qual o Dicionário Grego-Português e Português-Grego (Porto, Livraria Apostolado da Imprensa), de Isidoro Pereira, explica o seguinte:

«[...] filha de Agamémnon e de Clitmnestra, foi sacrificada por seu pai a Diana para obter ventos favoráveis que conduzissem os gregos a Tróia. Substituída Ifigénia por uma cabra, Diana levou-a para Táuride onde a fez sua sacerdotisa.»

Pergunta:

Tenho dúvidas se os nomes idéia e preparativos são nomes comuns abstractos ou se algum deles pode ser considerado concreto.

Resposta:

Já temos muitas vezes assinalado a frequente dificuldade em distinguir substantivos concretos e substantivos abstractos, sobretudo pelo facto de haver diferentes graus de concretude e de abstracção. As palavras preparativo e ideia são, em princípio, substantivos abstractos, porque não nomeiam seres ou objectos tangíveis.

Pegando em duas gramáticas de referência, verificamos que na conceptualização de um substantivo concreto está, sobretudo, subjacente a ideia de esse nome referir uma entidade perfeitamente individualizada no mundo físico, seja ela animada ou não-animada. Assim:

— Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (pág. 177), definem os substantivos concretos como os que «[...] designam os seres propriamente ditos, isto é, os nomes de pessoas, de lugares, de instituições, de um género, de uma espécie ou de um dos seus representantes», dando como exemplos: homem, Pedro, Maria, cidade, Lisboa, Brasil, Senado, Fórum, clero, árvore, cedro, Acaica, cão, cavalo, Rocinante. Os substantivos abstractos são os que «[...] designam noções, acções, estados e qualidades, considerados como seres» (idem); por exemplo (ibidem): justiça, verdade, glória, colheita, viagem, opinião, velhice, doença, limpeza, largura, optimismo, caridade, bondade, doçura, ira.

— Ev...