Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra doçarias pode ser considerada um nome coletivo?

Resposta:

A forma doçarias é um plural e, portanto, não é um coletivo.

No entanto, no singular, doçaria é um coletivo, correspondente a doce, daí que se defina como «quantidade ou porção grande de doces» (cf. Dicionário Houaiss). Outras aceções: «local onde se fabricam e/ou se vendem doces variados» (ibidem); «conjunto dos doces característicos de um local ou de uma época» (dicionário da Infopédia); «arte de confecionar doces» (ibidem).

No plural, o coletivo adquire o sentido de «tipos de doçaria».

Pergunta:

Tenho dúvidas quanto à mais adequada colocação do hífen.

Em vez de escrever «Por toda a vida poder amar-te», eu gostaria de saber se poderia escrever: «Por toda a vida poder-te amar», ao que me foi respondido que sim.

Entretanto, surgiu-me uma nova dúvida: Nesse último caso, o sentido não ficaria diferente, já que o te, originalmente, refere-se a amar («amar a ti») e não a poder?

No Brasil, ele seria escrito «por toda a vida poder te amar», ou seja, em vez de uma ênclise em poder, seria uma próclise em amar.

Não sei se, gramaticalmente, essa colocação já seja "pacificamente" aceita como possível, embora seja bastante difundida na prática. Ela pareceu-me mais apropriada já que, ao que me parece, amar-te seria uma oração subordinada substantiva reduzida de infinitivo, em vez de formar uma locução verbal com poder. A mesma dúvida aparece em «tentar servir-te», etc.

Mais uma vez, grato pela atenção!

Resposta:

Em Portugal, estão corretas as duas maneiras de colocar o pronome: «poder amar-te» e «poder-te amar». No Brasil, é corrente colocar o pronome antes do infinitivo sem hífen: «poder te amar». Para melhor contextualização desta resposta, recomenda-se a leitura dos Textos Relacionados que a acompanham nesta página.

O uso do hífen com os verbos auxiliares é um recurso gráfico que decorre do funcionamento dos pronomes átonos em Portugal, o qual tem importantes diferenças quando comparado com os usos e as normas do Brasil.

A possibilidade de associar o pronome ao auxiliar (poder) e não ao verbo principal (amar, com o qual se relaciona semântica e logicamente) deve ser bastante antiga na língua, porque podem recolher-se casos em que o pronome aparece antes do auxiliar, o que sugere que era possível fazer "subir" o pronome átono (também chamado clítico) para junto do verbo auxiliar, como a seguir se atesta com os auxiliares ir ou poder (os pronomes estão sublinhados, e os auxiliares, em itálico):

(1) «E meu irmãão Almançor a Sevylha me foy casar com hûû rey muy poderoso e de muy grande prez. » (Crónica Geral de Espanha de 1344, in Corpus do Português)

(2) «Pera deante me pode derribar anteparando [...].» (D. Duarte, Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, c. 1438, ibidem).

Nos exemplos acima, em português medieval, o pronome me aparece antes do verbo auxiliar – foy (foi) em (1), e pode, em (2) –, e não depois do verbo principal (casar, derribar). No p...

Pergunta:

Sobre abcesso e abscesso, sabendo que ambas as grafias estão corretas, gostaria de perguntar se existe alguma "mais correta" e qual é a mais utilizada.

Obrigada!

Resposta:

A forma historicamente mais fiel é abscesso, visto que a palavra é adaptação do latim abscessus, us, «afastamento, ausência, abscesso».

Os dicionários feitos no Brasil recomendam abscesso,  como se pode confirmar pelo Dicionário Houaiss, pelo Dicionário Michaelis e pelo Dicionário Aulete, o qual, embora elaborado em Portugal, se tornou bastante popular no Brasil. Contudo, em Portugal, prefere-se a forma abcesso, «de maior uso», conforme anota Rebelo Gonçalves no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 31, nota).

Refira-se outro caso gráfica e foneticamente semelhante, o das variantes abscissa, que tem registo dicionarístico brasileiro, e abcissa, que os dicionários portugueses indicam como forma corrente em Portugal.

Pergunta:

dicionário da Infopédia refere que a palavra custarda existe como o aportuguesamento da palavra custard. Não consigo encontrar mais nenhum dicionário que prove que a palavra existe. Podem esclarecer?

Obrigado.

Resposta:

O aportuguesamento custarda atesta-se, pelo menos, em Portugal desde meados do século XX, por exemplo, em livros de culinária.

Na 1.ª edição (1947) de O Livro de Pantagruel, de Bertha Rosa-Limpo, ocorre várias vezes a forma Custarda com maiúscula inicial e por vezes associada a farinha na expressão «farinha de Custarda», como acontece numa receita de creme de leite com Custarda, onde se lê o seguinte (p. 582): «A farinha Custarda, que se vende em pacotes, é amarelada e perfumada com baunilha.»

Tratava-se, portanto, de uma marca comercial cujo nome, ao que parece, era adaptação do inglês custard. O termo não é, portanto, estranho à doçaria portuguesa, embora não pareça dos mais tradicionais.

É verdade que, entre vários dicionários, só a Infopédia acolhe o termo com configuração portuguesa, mas sabe-se também que é entrada recente, de 02/02/2021, conforme assinala Helder Guégués no seu blogue Linguagista. É forma legitima, que reflete algum uso efetivo quer na gastronomia quer até em críticas de gastronomia, como também documenta Guégués, ao citar Fernando Melo, «As cerejas são como as conversas», Diário de Notícias,12/06/2021, p. 42): «A célebre sobremesa clafoutis nasceu a partir da cereja e mais não é do que a dita cereja pre...

Pergunta:

Tenho algumas dúvidas quanto ao processo de formação das palavras biforme e (o)/(a) caça.

Penso que a palavra biforme é formada por composição morfológica, sendo que tanto bi- como -forme são radicais (bi- = «duas» / -forme = «formas»), e seguindo o exemplo de cruciforme (cruci- = «cruz» / -forme = «forma»; «em forma de cruz»). No entanto, algumas gramáticas apresentam bi-/bis- como prefixo de origem latina, apresentando como exemplos bisneto, bimestral, o que me leva a duvidar do processo de formação da palavra biforme. Assim sendo, biforme é um composto morfológico ou palavra derivada por prefixação, ou pode-se considerar os dois processos?

Quanto à palavra caça, a dúvida consiste na expressão «o caça». Esta palavra surge descontextualizada num exercício, pelo que creio que o raciocínio de quem o resolve pode levar à consideração de dois processos distintos de derivação, uma vez que tanto a conversão como a derivação não afixal permitem a formação de nomes a partir de verbos. Como classificar o processo da palavra «(a) caça» no par de frases «ele caça muito bem» e «a caça de elefantes é proibida» e da palavra «(o) caça» no par «ele caça muito bem» e «o caça voa a alta velocidade». A minha primeira lógica é classificá-los como conversão, mas serão ambas formadas da mesma forma? Se não, como explicá-lo a alunos de 8.º ano?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Os dois exemplos em questão levantam alguns problemas de análise que podem não ser fáceis de apreender para alunos mais jovens.

Sobre o elemento bi- não há consenso, mas tende-se a considerá-lo entre os prefixos, e, portanto, biforme é uma palavra derivada por prefixação (cf. resposta "Bi- e tri- entre prefixos e radicais").

No segundo caso, considera-se caça, no feminino, como um derivado não afixal (na terminologia mais antiga, um derivado regressivo) de caçar. No masculino, é o resultado elíptico de um composto ou de uma expressão composta lexicalizada: «o [avião de] caça».

Em suma, os vocábulos em apreço não serão os mais adequados para alunos do 8.º ano estudarem morfologia, justamente pelos vários aspetos que a sua análise envolve que estão bem identificados pela consulente. Aconselha-se a seleção de exemplos de análise mais consensual, como minimercado, palavra derivada por prefixação, e cantar/«o/um cantar», que é um caso de conversão.