Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Criou-se há pouco tempo o vocábulo "cadeirante" aqui no Brasil para substituir, creio, o circunlóquio "usuário de cadeira de rodas" ou talvez seja mais um eufemismo. Aliás, há uma prodigalidade de inventar expressões amaneiradas ou adocicadas neste país: os aleijados foram suplantados pelos "deficientes físicos", os cegos chamam-se "deficientes visuais", os surdos são agora "deficientes auditivos", os doidos foram substituídos pelos "deficientes mentais", os leprosos são "hansenianos", os mongolóides passaram a denominar-se "portadores da síndrome de Down", as crianças retardadas ou atrasadas são "excepcionais ou especiais" (como se as demais crianças não fossem especiais!), os velhos passaram a chamar-se "os da terceira idade ou melhor idade". (Gostaria de entender por que há tanta preocupação com eufemismos. Não é melhor dizer a verdade? Ocorre, porém, que a verdade muitas vezes dói...)

Tudo isso são caricaturas lingüísticas de mau gosto. Não me deixo levar por tais leviandades de expressão. Daqui a uns dias os inventores de bizantinices eufemísticas talvez queiram corrigir a Bíblia: cegos, coxos, paralíticos, leprosos, velhos, surdos, lunáticos, doidos, mudos etc. Está errada a Bíblia? Pois bem, no Brasil existe esta mania de quererem mascarar a realidade (não sei se a mesma coisa se dá em Portugal).

Quero voltar ao vocábulo "cadeirante". Ora, de amar temos amante, de secar temos secante etc. Existe todavia o verbo "cadeirar" para que se abone o "cadeirante"? Parece-vos bem formado o neologismo "cadeirante", ou não passa de mais um abuso? Desejo conhecer-vos a opinião.

Muito grato.

 

Resposta:

Muitos nomes e adjectivos terminados em -nte têm origem numa forma verbal latina, o particípio presente. Tal significa que tais nomes e adjectivos pressupõem um verbo, como bem observa o consulente. Por outras palavras, se existe andar e ouvir, podemos formar andante e ouvinte; mas dado que não existe *"cadeirar", à forma "cadeirante" parece faltar respaldo histórico-morfológico. No entanto, o Dicionário Houaiss já considera o elemento -nte um sufixo como outros e não como marca da antiga flexão latina: «a extensão da ocorrência e freqüência do suf. permite seu uso como se de f. verb.: baritonante < *baritonar». É deste modo que a forma cadeirante encontra alguma legitimidade, embora possa não ser do agrado dos mais puristas.

 

N.E. (18/07/2022) O adjetivo e, também, substantivo cadeirante («aquele ou qem se desloca numa cadeira de rodas») já se encontra dicionarizado. Por exemplo, na Priberam, no Dicionário Online de Português, no Meu Dicionário.Org., ou no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. E, ainda, aqui, aqui e

Pergunta:

Será correcto pronunciar as palavras soubeste, soubesse como "sóbeste", "sóbesse"? Não será correcto na oralidade abreviar o "ou" para "ó", como quando dizemos por exemplo «dois "ó" três...» ou mesmo «p'rá e p'ró»? Aliás, nós no Sul [de Portugal] nunca pronunciamos "ou", mas sim "ô", logo no máximo diremos "sôbesse"…

Resposta:

Na pronúncia de Lisboa e em grande parte do Centro e do Sul de Portugal, o par de letras <ou> já não se lê como ditongo — [ow] ou [ɐw] —, mas como um ó fechado — [o]—, na sequência de um fenómeno de monotongação, que consiste em um ditongo passar a ser articulado como uma vogal simples. No entanto, em certos registos mais populares, o antigo ditongo pronuncia-se como ó aberto, em posição pré-tónica: "róbar", "tórada", "sóbeste". Do mesmo modo, no discurso mais informal do Centro e do Sul, acontece que a conjunção ou soa como ó, confirmando-se assim a descrição do consulente. Porém, é de sublinhar que se trata de uma pronúncia não aceite pelos normativistas, que preferem o ó fechado ("rôbar", "tôrada", "sôbeste", "dois ô três").

Note-se que se escreve prà e prò, que, respectivamente, são contracções de para a e para o. Estas contracções não pressupõem o ditongo [ow]/[ɐw].

Pergunta:

«Fazer uma tempestade num copo de água» pode ser considerado uma personificação (figura de estilo)?

Resposta:

Não, porque não se atribuem características humanas a coisas ou animais. Entre as figuras de estilo que é possível identificar na expressão, temos:

a) a metáfora, porque «tempestade» e «copo de água» significam, respectivamente, «grande problema» e «pequeno problema»/«problema nulo»;

b) o paradoxo, dada a impossibilidade de o fenómeno atmosférico aludido se produzir no espaço de um copo de água.

c) uma hipérbole, porque mesmo que em linguagem figurada se «agitem as águas» num copo, o resultado nunca será uma tempestade, a não ser por exagero.

Pergunta:

Sabemos que a palavra nécessaire é um estrangeirismo, mas é usada na língua portuguesa como sinônimo de frasqueira. Por isso gostaríamos de saber se devemos utilizá-la como feminino ou masculino.

Obrigada.

 

Resposta:

O galicismo nécessaire é do género masculino (ver Dicionário Houaiss, na versão brasileira, e Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). No Brasil, usa-se o sinónimo frasqueira, que não terá conseguido induzir o feminino na norma, a avaliar pelo dicionário brasileiro consultado; mas em Portugal parece não haver um termo vernáculo equivalente, a não ser que se considerem bolsa, estojo, mala ou até malinha, especificados pelo também galicismo toilette («bolsa, estojo, mala, malinha de toilette»). 

Pergunta:

Devem pedir-se «Dois licores Beirões», tal como eu acho, ou «Dois Licores Beirão», como está na publicidade?

Obrigado.

Resposta:

Os nomes próprios podem ser pluralizados, como acontece com os apelidos: «os Maias», «os Távoras», «os Silvas». Do mesmo, diz-se «dois Licores Beirões», escrevendo o nome da marca em maiúsculas.

Ao contrário dos apelidos, cujos plurais designam indivíduos (por exemplo, «Afonso e Carlos são dois Maias»), o plural de Licor Beirão (como o de vinho do Porto ou simplesmente o de vinho ou água) é equivalente a «dois cálices de Licor Beirão», dado designar uma bebida, cuja quantificação se faz não por indivíduos mas por partes de um todo que correspondem a uma unidade de medida («um litro de Licor Beirão») ou à capacidade de um dado objecto («um copo, um cálice de Licor Beirão»). Por outras palavras, Licor Beirão comporta-se como outros nomes não contáveis (por exemplo, vinho em «copo de vinho» e água em «copo de água»).1

1Nomes não contáveis

são aqueles que «não podem designar partes singulares de conjuntos, são mais dificilmente pluralizáveis do que os nomes contáveis e, nos casos em que admitem variação de número (cf. água, ferro), a oposição singular/plural corresponde a diversidade de qualificações da entidade ou quantificações de porções delimitadas de matéria (cf. ferros).» (Mateus et aliae 2003: 219).