Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a diferença entre «projecto de êxito» e «projecto com êxito»?

Muito obrigada.

Resposta:

Tudo depende muito do contexto, sobretudo no caso da primeira expressão, que pode ser bastante vaga. Assim, um «projecto de êxito» é o que promete o êxito ou cujo êxito está, de alguma forma, garantido desde a sua concepção ou ainda o que tem alcançado êxito. Quanto à outra expressão, «projecto com êxito», parece-me que apenas um dos sentidos se lhe aplica: o projecto que na realidade tem tido êxito.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado dos provérbios populares:

«De fio a pavio.»

«Rente como pão quente.»

«Chegar o rabo à ratoeira.»

Resposta:

A expressões apresentadas enquadram-se no que se considera uma expressão idiomática.

1. «De fio a pavio»

«Do começo ao fim; completamente» (Dicionário Houaiss)

2. «Rente como [ou que nem] pão quente» (brasileirismo de uso informal)

«Com muita rapidez e pontualidade» (idem);

3. «Chegar o rabo à ratoeira»

Não encontro atestada esta expressão em nenhum dicionário, nem geral, nem de locuções. Existem «cair na ratoeira», que significa «deixar-se apanhar, lograr», e «meter-se na ratoeira», isto é, «cair voluntariamente num logro, numa emboscada» (cf.  Antenor Nascentes, Tesouro da Fraseologia Brasileira, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986). Como «chegar alguma coisa a outra/a alguém» é o mesmo que «aproximar», interpreto «chegar o rabo à ratoeira» como «estar perto de cair num logro», «estar em perigo» e «arriscar-se (voluntária ou involuntariamente)».

Pergunta:

Qual é o aumentativo da palavra ônibus?

Resposta:

Paul Teyssier, no seu Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 89), diz que o sufixo aumentativo mais importante é -ão, que «[...] é ainda produtivo (sobretudo no Brasil), isto é, o locutor pode formar livremente, sobre um dado radical, um aumentativo em -ão». Por conseguinte, em princípio, o aumentativo sintético de ónibus será "onibusão". Em alternativa, pode-se recorrer a um aumentativo analítico, isto é, empregando o susbtantivo com um adjectivo que indique aumento (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, pág. 199): por exemplo, «ónibus grande», «óbus enorme».

De assinalar que o aumentativo se escreve com -s-, uma vez que o sufixo -ão se liga directamente à palavra, à semelhança do sufixo diminutivo -inho com palavras terminadas em -s: português > portuguesinho. Não se deve, portanto, confundir a terminação -são ou -sinho com as formas -zão e -zinho: > pezão, pezinho.

 

N. E. (6/1/2017)  A forma ônibus (no Brasil)/ónibus (em Portugal e nos PALOP e Timor-Leste) correspon...

Pergunta:

Por favor, qual a forma correta? «Na hipótese de que os acionistas decidam aumentar o número de ações», ou «na hipótese de os acionistas decidirem aumentar o número de ações»?

Desde já agradeço.

Resposta:

Ambas as frases estão correctas. Em orações que completem substantivos («a hipótese de», «a impressão de», «a ideia de») é possível empregar uma oração completiva com o verbo num tempo finito («de que os accionistas decidam...») ou uma oração completiva de infinitivo («de os accionistas decidirem...»).

Pergunta:

Ao ler por curiosidade a Constituição da República Portuguesa, deparei-me com o artigo 24.º, parágrafo 2, que refere que:

«Em caso algum haverá pena de morte.»

A frase despertou-me algumas dúvidas e resolvi fazer uma busca no vosso site. Foi então que reparei que, já antes, Pedro Andrade, de Braga, tinha colocado uma questão sobre o referido parágrafo.

Ao contrário do sr. Andrade, não tenho qualquer dúvida quanto à semântica da frase e interpreto-a como um repúdio total da pena de morte pela legislação portuguesa.

Fiquei, isso sim, com dúvidas quanto à sintaxe da frase, uma vez que se trata de uma frase declarativa negativa sem a presença de qualquer elemento de negação. Estou familiarizado com a expressão «em caso algum», mas pensava que não era de uma correcção linguística suficiente para poder ser utilizada num documento como a Constituição.

Explica o Ciberdúvidas na resposta a Paulo Andrade:

«[...] posposto a um substantivo, algum assumiu, na língua moderna, significação negativa, mais forte do que a expressa por nenhum»

Sou, assumidamente, um leigo em linguística. No entanto, há três questões que me assaltam após ler a explicação do Ciberdúvidas:

1. A língua moderna existe por oposição a quê? À língua clássica? Como se distingue uma da outra em pormenores tão ínfimos? O bué, fazendo parte da língua moderna, teria lugar na Constituição?

2. «A palavra algum assumiu...» Assumiu? ...

Resposta:

As três primeiras perguntas feitas pelo consulente são pertinentes, mas deve ter-se em atenção que a aceitação de um uso não acarreta a de todos os usos: prevê-se por isso que bué ainda tenha de esperar bastante tempo até chegar ao registo formal e especializado. Já o caso de algum me parece relevar de outra ordem, envolvendo factores sintácticos e semânticos.

O que acontece com «em caso algum» parece-me semelhante à colocação de palavras e expressões negativas que surjam no começo de uma frase. O valor negativo (ou a polaridade negativa) é normalmente marcado pelo advérbio de negação não, seguindo-se depois as expressões negativas, uma vez que em português existe a dupla negação (ao contrário do inglês normativo):

1.

(a) «Não haverá pena de morte em nenhum caso.»
(b) «Não haverá pena de morte em caso nenhum.»
(c) «Não haverá pena de morte em caso algum.» 

O contraste é mínimo entre as frases em 1: no entanto, em 1(a) parece salientar-se apenas o conjunto de casos existentes, enquanto em 1(b) e 1(c) também se contempla o conjunto de casos possíveis; mas a diferença entre 1(b) e 1(c) esbate-se completamente, podendo-se considerá-las sinónimas.

Quando as expressões sublinhadas em 1 são deslocadas para o começo da frase, segue-se a regra geral que impede duas marcas de negação antes do verbo de uma frase; por conseguinte, não se emprega o advérbio não:

2.

(a) «Em nenhum caso haverá pena de morte.»
(b) «Em caso nenhum haverá pena morte.»
(c) «Em caso algum haverá pena de morte.»

Em 2(c) mostra-se que a expressão negativa se comporta do mesmo ...