Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe o termo "culturáveis"? Por exemplo, pode-se dizer "microrganismos culturáveis" em vez de "microrganismos cultiváveis"?

Muito obrigada.

Resposta:

Consultámos F. V. P. da Fonseca, que esclarece que «só cultivável se encontra registado». Não é, pois, o caso do termo culturável, que é um neologismo usado no domínio da biologia, para indicar que células, tecidos e organismos foram criados em cultura, isto é, num processo de «cultivo de células ou tecidos vivos em uma solução contendo nutrientes adequados e em condições propícias à sobrevivência» (Dicionário Houaiss). Contudo, se, em biologia, o sentido de cultura é o mesmo de cultivo, não é inadequado o termo cultivável, apesar de menos específico. Em suma, quer cultivável quer culturável são termos aceitáveis no contexto em causa, mas o segundo pode ter maior aptidão científica, por ser mais especializado e menos ambíguo.

Pergunta:

A propósito do novo treinador do Benfica, o espanhol Quique Flores, e como já ouvi os sempre nada rigorosos jornalistas da rádio e da televisão a dizerem das duas formas, gostava de saber: Quique, ou Cuique?
Obrigado.

Resposta:

Em Espanha, Quique é diminutivo de Henrique e pronuncia-se "quíquê", palavra grave com a vogal átona final mais aberta do que acontece com as vogais portuguesas na mesma posição. Por conseguinte, a pronúncia portuguesa será "quique" e nunca "cuique", "cuíque" ou "cuíqui".

Pergunta:

Qual a origem do meu nome, Aida?

Bem hajam.

Resposta:

O nome em questão é escrito Aida em Portugal e Aída no Brasil. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), trata-se de um «nome vulgarizado pela célebre ópera homónima de Verdi, representada pela primeira vez a 24-XII-1871 na Ópera Real do Cairo, a coincidir dom a abertura do canal do Suez».1 Machado observa que «há várias hipóteses sobre a origem do nome», mas nega a hipótese de Leite de Vasconcelos, que considerava o nome uma criação de Verdi; em vez disso, Machado lembra que «há em árabe o nome ´aidâ, relacionado com ´aid, festa religiosa» e «a al-´aid aç-çagū, a festa que segue o jejum do Ramadão». Refere ainda o padre Valdomiro Pires Martins (Nomes de Batismo Canónicos e Profanos. Léxico Onomástico. Petrópolis, 1961), que «cita Aída, funcionário mártir de Ebstorf, germânico, de 880, com festa a 2-II.»

Um site de nomes ingleses (Behind the Name) registra Ayda e a variante Aida, nome da princesa etíope que é protagonista da ópera de Verdi, como adaptações do adjectivo árabe `ayda (ﻋﺎﯿﺪﺓ), «que regressa» e «visitante», assim confirmando a etimologia proposta por Machado.

Por último, uma curiosidade: em Portugal, a grafia e a pronúncia mais correntes do nome próprio é Aida; contudo, o nome e o título da ópera de Verdi pronunciam-se "aída", o que sugere...

Pergunta:

A expressão «entrada em produção» é cada vez mais frequente nos meios informáticos, mas julgo que é um pouco uma aberração... Já tentei descobrir a sua origem, mas não descobri. Gostaria que me elucidassem sobre a sua origem e, já agora, sobre este tipo de calão informático que vai invadindo a nossa língua.

Obrigado.

Resposta:

Numa pesquisa na Internet encontrámos o seguinte contexto, em que a expressão significa «começo de produção», e parece não existir outra maneira de fixar lexicalmente esta noção:

«O consórcio que explora o Bloco 14 em Angola, no qual a Galp Energia tem uma participação, comunicou hoje oficialmente a entrada em produção do reservatório Lândana Norte, situado na Área de Desenvolvimento Tômbua-Lândana.»

Mas num outro contexto, a ocorrência da expressão «entrada em produção» não é adequada:

«No dia 18 de Setembro, segunda-feira, terá início a entrada em produção, em fase experimental, deste Sistema da Exportação e, também, do Sistema da Selecção Automática (SSA), nas Alfândegas Marítima de Lisboa e Leixões, fase experimental esta que decorrerá durante uma semana, sinalizando-se, portanto, no dia 22, sexta-feira.»

Aparentemente, «entrada em produção» significa o mesmo que a tradicional expressão «entrada em funcionamento» ou a palavra «activação».

Não fazemos ideia da origem da expressão em causa. O inglês «to go into production»? Ou tratar-se-á da generalização de «entrada em produção» a contextos em não se pode falar de «produção» no verdadeiro sentido da palavra? Deixamos esta parte da resposta em aberto.

Quanto a pronunciarmo-nos sobre a gíria informática, remetemos o consulente para as muitas respostas que temos sobre neologismos na área em apreço. Verá que muitos se justificam, por se tratar de designações de um campo de actividade...

Pergunta:

A expressão «há dias atrás» é completamente incorrecta, ou pode ser admissível em termos coloquiais?

Resposta:

As opiniões dividem-se quanto a aceitar ou não a construção «há... atrás». Em português, tem havido duas construções:

a) tempo transcorrido sobre um acontecimento: «nasceu há dois dias»;

b) duração de uma situação, do passado até ao presente: «vivo aqui há dois anos».

A construção a) pode ser substituída por outra em que se emprega atrás:

c) «nasceu dois dias atrás»

Esta construção não é compatível com o valor de em b) e por isso não pode substituí-lo:

d) * «vivo aqui há dois dias atrás»

Dir-se-ia que «há... atrás» surge do fusão de a) e c):

e) «nasceu há dois dias atrás»

Muitos gramáticos consideram que a frase em e) é uma redundância e, por isso, deve ser rejeitada. Outros aceitam-na, argumentando tratar-se de um reforço. Quanto a mim, em registo cuidado, é preferível a tradição que dá «há...» e «... atrás» como construções temporais sinónimas, mas que não podem coocorrer. No entanto, aceito que coloquialmente a construção seja usada, até porque parece que caminhamos para o reforço da distinção entre a) e b). Note-se que noutras línguas há marcadores diferentes; por exempo, em francês e inglês:

(1) «Je l'ai vu il ya un mois.»/«I saw him a month ago.»

(2) «J'habite ici depuis un mois.»/«I've lived here for a month.»

A tendência em português coloquial aponta para empregar «há... atrás» como reforço de «... atrás» no caso de (1), enquanto «há...» se aplica em situações como as de (2):

(3) «Vi-o há um mês atrás.»