Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão «entrada em produção» é cada vez mais frequente nos meios informáticos, mas julgo que é um pouco uma aberração... Já tentei descobrir a sua origem, mas não descobri. Gostaria que me elucidassem sobre a sua origem e, já agora, sobre este tipo de calão informático que vai invadindo a nossa língua.

Obrigado.

Resposta:

Numa pesquisa na Internet encontrámos o seguinte contexto, em que a expressão significa «começo de produção», e parece não existir outra maneira de fixar lexicalmente esta noção:

«O consórcio que explora o Bloco 14 em Angola, no qual a Galp Energia tem uma participação, comunicou hoje oficialmente a entrada em produção do reservatório Lândana Norte, situado na Área de Desenvolvimento Tômbua-Lândana.»

Mas num outro contexto, a ocorrência da expressão «entrada em produção» não é adequada:

«No dia 18 de Setembro, segunda-feira, terá início a entrada em produção, em fase experimental, deste Sistema da Exportação e, também, do Sistema da Selecção Automática (SSA), nas Alfândegas Marítima de Lisboa e Leixões, fase experimental esta que decorrerá durante uma semana, sinalizando-se, portanto, no dia 22, sexta-feira.»

Aparentemente, «entrada em produção» significa o mesmo que a tradicional expressão «entrada em funcionamento» ou a palavra «activação».

Não fazemos ideia da origem da expressão em causa. O inglês «to go into production»? Ou tratar-se-á da generalização de «entrada em produção» a contextos em não se pode falar de «produção» no verdadeiro sentido da palavra? Deixamos esta parte da resposta em aberto.

Quanto a pronunciarmo-nos sobre a gíria informática, remetemos o consulente para as muitas respostas que temos sobre neologismos na área em apreço. Verá que muitos se justificam, por se tratar de designações de um campo de actividade...

Pergunta:

A expressão «há dias atrás» é completamente incorrecta, ou pode ser admissível em termos coloquiais?

Resposta:

As opiniões dividem-se quanto a aceitar ou não a construção «há... atrás». Em português, tem havido duas construções:

a) tempo transcorrido sobre um acontecimento: «nasceu há dois dias»;

b) duração de uma situação, do passado até ao presente: «vivo aqui há dois anos».

A construção a) pode ser substituída por outra em que se emprega atrás:

c) «nasceu dois dias atrás»

Esta construção não é compatível com o valor de em b) e por isso não pode substituí-lo:

d) * «vivo aqui há dois dias atrás»

Dir-se-ia que «há... atrás» surge do fusão de a) e c):

e) «nasceu há dois dias atrás»

Muitos gramáticos consideram que a frase em e) é uma redundância e, por isso, deve ser rejeitada. Outros aceitam-na, argumentando tratar-se de um reforço. Quanto a mim, em registo cuidado, é preferível a tradição que dá «há...» e «... atrás» como construções temporais sinónimas, mas que não podem coocorrer. No entanto, aceito que coloquialmente a construção seja usada, até porque parece que caminhamos para o reforço da distinção entre a) e b). Note-se que noutras línguas há marcadores diferentes; por exempo, em francês e inglês:

(1) «Je l'ai vu il ya un mois.»/«I saw him a month ago.»

(2) «J'habite ici depuis un mois.»/«I've lived here for a month.»

A tendência em português coloquial aponta para empregar «há... atrás» como reforço de «... atrás» no caso de (1), enquanto «há...» se aplica em situações como as de (2):

(3) «Vi-o há um mês atrás.»

Pergunta:

Como se faz a análise morfológica de comprá-lo-ei?

 

Resposta:

Comprá-lo-ei é a 1.ª pessoa do futuro do indicativo do verbo comprar conjugado pronominalmente. É constituído pela forma comprá, variante contextual do infinitivo comprar, pelo pronome clítico lo, que é variante contextual do pronome o, e por á, que é a terminação do futuro e está morfologicamente relacionada com a forma , do verbo haver.

Vemos, portanto, que o futuro do indicativo e o condicional de um dado verbo são constituídos pelo respectivo infinitivo e pelo presente do indicativo de haver (cf. Mateus et alii, 2003, Gramática da Língua Portuguesa, pág. 937). Quando estes tempos são conjugados pronominalmente, diz-se que ocorre a mesóclise do pronome átono, isto é, a interpolação do pronome átono entre os elementos constituintes da forma verbal: por exemplo, comprar-lhe-ei (futuro) e comprar-lhe-ia (condicional) resultam da associação de, respectivamente, comprarei e compraria ao pronome lhe. A sequência de sílabas átonas comprar- é na realidade o infinitivo comprar, como revela a mesóclise em comprar-lhe-ei e comprar-lhe-ia: o /a/ final recupera o timbre aberto e o acento fónico na última sílaba.

No caso de comprá-lo-ei, distinguem-se, por um lado, a 1.ª pessoa do singular do futuro do indicativo do verbo comprar e, por outro, o pronome átono de 3.ª pessoa o. A associação de comprar com o referido pronome átono segue as transformações morfológicas e gráficas previstas nesse contexto: perda do -r, acento agudo ...

Pergunta:

Quanto ao gênero, como classificamos o substantivo pombo? Gostaria de saber se o correto é dizer «os pombos» ou «as pombas», sendo que o primeiro é o masculino do segundo. Obrigada.

Resposta:

A forma pombo é um substantivo masculino; pomba é o seu feminino. No entanto, nota-se que esta espécie de ave tanto pode ser designada genericamente pelo masculino como pelo feminino: por exemplo, em Portugal um pombo branco é muitas vezes referido como pomba, sem atender ao sexo do animal. Isto pode ser confirmado por Maria Helena de Moura Neves, Guia de Usos do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003, págs. 605/606):

«Pombo é substantivo masculino, e pomba é substantivo feminino, ambos fazendo referência tanto ao macho como à fêmea do animal (substantivos epicenos). [...] Há dicionários, entretanto, que registram pombo como o masculino de pomba [...].»

Assim, dirá pombos, se quiser referir-se genericamente ao animal («dar milho aos pombos»). Tal não exclui usar pombas não só para fazer referência a uma pluralidade de animais da espécie pombo do sexo feminino mas também para se reportar, como se viu, a um conjunto de pombos, independentemente do seu sexo.

Pergunta:

Qual a forma correta: mau-súbito? mal-súbito? as duas formas? com ou sem hífen?

Resposta:

Sem outro contexto, o mais provável é que expressão em causa seja «mal súbito», constituída pelo substantivo mal, «doença, infelicidade», e pelo adjectivo súbito, «repentino, inesperado». Esta expressão não tem hífen, porque não constitui uma palavra com significado diferente da associação dos seus elementos constituintes.

Possível, mas muito pouco provável, se não mesmo absurda, seria a expressão «mau súbito», equivalente a «indivíduo mau que é súbito». Calculo que a pergunta da consulente proceda da confusão entre mal e mau, decorrente da vocalização em u do l em fim de consoante (maldade = "maudade") e de palavra (mal = "mau") nos falares brasileiros.