Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber o que são tropos retóricos e o que os distingue de figuras retóricas.

Resposta:

Não há clareza nem unanimidade a respeito da definição de tropo. Dá-se aqui a perspectiva de João David Pinto Correia em Falar Melhor, Escrever Melhor (Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, págs. 495-505). Sintetizando propostas que já têm séculos e apropriações mais recentes, Pinto Correia classifica como figuras de expressividade o que tradicionalmente no ensino se designa "figuras de retórica" ou "figuras de estilo"; para ele, existem quatro grandes grupos:

1. Figuras de dicção;

2. Figuras de construção (ou de sintaxe)

3. Figuras de pensamento;

4. Figuras de alteração semântica (tropos).

As figuras de dicção não são relevantes para esta discussão e são equivalentes a processos fonológicos e fonéticos de supressão, adição e substituição de sons de uma língua. Restam os outros três tipos, havendo contraste entre as figuras de construção (ou de sintaxe), por um lado, e as de pensamento e os tropos, por outro. Por se tratar de dois tipos que resultam de processos semânticos, é discutível a separação entre figuras de pensamento e tropos.

Seja como for, Pinto Correia distingue figuras de pensamento de tropos, atribuindo-lhes subconjuntos:

I. Figuras de pensamento: efeitos de estratégia enfática (p. ex., aliteração, apóstrofe, hipálage,1 paráfrase, prosopopeia); efeitos de comparação (p. ex., comparação, paralelo, antítese, quiasmo);  efeitos de intensificação/atenuação (hipérbole, litotes).

II. Tropos ou figuras que se baseiam em quatro figuras ou tropos fundamentais:

a) metáfora: alegoria,

Pergunta:

Ao citar passagens de uma obra poética, quando devo utilizar o texto citado entre aspas incluído em discurso parentético?

Devo por exemplo dizer que Caeiro considera que pensar é «estar doente dos olhos»? Se assim for, quando devo incluir os parênteses e o texto citado dentro de aspas?

Resposta:

Embora no poema original o verso em questão se encontre entre parênteses, não tem sentido mantê-los numa citação como a que a consulente apresenta, uma vez que, descontextualizados, tais parênteses deixaram de se justificar, ou seja, o verso citado passou a constituir informação importante no conjunto da frase em que se insere («Caeiro considera que pensar é "estar doente dos olhos"»). Situação diferente é citar a estrofe em que ocorre o verso parentético, ou seja, a terceira estrofe do poema que começa por «O meu olhar é nítido como um girassol», de O Guardador de Rebanhos; neste contexto, é claro que se conservam os parênteses, por fidelidade ao texto:

«O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...»

Pergunta:

Examine-se a estrofe seguinte:

«E seguem ambos a passo inteiro:

Um, sentindo o fardo aliviado,

O outro, vergado ao peso do madeiro»

Estão corretas as vírgulas após «Um» e «O outro». São elas de rigor?

Obrigado.

Resposta:

As expressões «sentindo o fardo aliviado» e «vergado ao peso do madeiro» são orações adjectivas reduzidas, respectivamente, de gerúndio e de particípio. As vírgulas que as antecedem estão, de facto, correctas, como aliás o consulente afirma. Se elas são de rigor? A respeito do contexto, sim, como explicarei mais adiante. Mas em termos de este tipo de orações ser antecedido de vírgula, não, porque é possível não haver vírgulas em certos contextos.

Entre os exemplos que Bechara (Moderna Gramatica Portuguesa, 517/518) dá de oração adjectiva reduzida de gerúndio, há os que têm vírgula e os que a não têm:

(1) «Cujos brados selvagens de guerra começavam a soar ao longe como um trovão ribombando no vale.»

(2) «O livro V, compreendendo as leis penais, aquele que, após os progressos efetuados na legislação e na humanidade, mais carecia de pronta reformação.»

Neste casos, a vírgula não é facultativa; indica o valor restritivo da oração, como na frase (1), enquanto em (2) é equivalente a uma oração relativa apositiva ou explicativa («O livro V, que compreende as leis penais,...»).1

Num exempo de oração reduzida participial, temos vírgula (idem, pág. 518; o parênteses é do original):

«Os anais ensangüentados da humanidade estão cheios de facínoras, empuxados (= que foram empuxados) ao crime pela ingratidão injuriosa de mulheres muito amadas, e perversíssimas.»2

Note-se, porém, que nada impede omitir a vírgula antes do particípio, obtendo-se «facínoras empuxados ao crime». A ausência de vírgula parece mesmo desejável, porque a falta de artigo em «facínoras» acarreta a interpretação restritiva da oração adjectiva reduzida de particípio.

Pergunta:

A dúvida apresentada por Alberto Medeiros e esclarecida por Carlos Rocha em 20/06/2008 mostra que no Brasil ainda se usa "Dize-me" na 2.ª pessoa do sing. do imperativo. "Traze-me" e "Faze-me" também são correctas no Brasil? O Acordo 1990 não prevê a uniformização? É claro que não é apenas uma questão de grafia, mas...

Obrigado.

Resposta:

As alternâncias das formas de imperativo da 2.ª pessoa do singular diz/dize, faz/faze, traz/traze pertencem ao domínio morfológico e não têm de ser resolvidas pelo Acordo Ortográfico de 1990, que tem em vista representar graficamente a pronúncia das palavras. O facto de o consulente brasileiro ter usado o imperativo dize talvez nos diga mais sobre um estilo linguístico pessoal do que sobre a variedade brasileira que ele usa normalmente. Basta recordar que no Brasil as formas de 2.ª pessoa do singular são, na sua maior parte, substituídas pelas da 3.ª pessoa em associação com a forma de tratamento você. O tu ainda se usa, ao que parece nos estados do Sul e nos do Norte, mas combinado muitas vezes com a flexão de 3.ª pessoa do singular («tu não fala assim comigo»). No caso do imperativo, seria de esperar que se usasse, em relação a um interlocutor, as formas correspondentes a vocêdiga/faça/traga (você) —, mas sabemos que coloquialmente se emprega «diz/faz/traz para mim».

No entanto, é verdade que a consulta de uma gramática brasileira, a Moderna Gramática Portuguesa (págs. 267-271), de Evanildo Bechara, apenas regista como imperativos de 2.ª pessoa do singular dos verbos dizer, fazer e trazer as formas dize, faze e traze, deixando pensar que ainda são amplamente usadas no Brasil. Considero que não é disso que se trata: tais formas estão presentes porque os objectivos da gramática são normativos e procuram descrever um uso que é tradicionalmente visto como correcto no Brasil — mesmo que algumas formas nunca ou raramente se usem entre brasileiros.

Pergunta:

Ao se referir ao material usado em uma construção civil, pode-se dizer «construção de aço». Como nas construções convencionais usa-se o aço juntamente com o concreto (betão), uma Associação Brasileira preferiu usar «construção em aço». Penso que essa expressão é um galicismo. Eu preferiria usar «construção com aço».

O que dizem os senhores?

Resposta:

Usa-se a preposição de para referir a matéria de que um objecto é feito. Deste modo, se construção significar o mesmo que edifício ou qualquer obra em geral, dir-se-á: «construção de aço». Neste caso, «construção em aço» é um galicismo, que a norma continua a condenar.

Se construção for o mesmo que «acto ou acção de construir», não terá sentido «construção de aço», porque se corre o risco de entender «construção de um material que é o aço»; mas afigura-se legítima a expressão «construção com aço», parafraseando-a como «construção que utiliza o aço». No entanto, o valor instrumental da preposição com pode dar azo a alguma confusão; com efeito, «construção com aço» pode sugerir que o aço foi usado não como material mas como instrumento (ex., «construção com ferramentas de aço»). Por outra parte, é muito corrente dizer-se «construção em aço/pedra/madeira», em que se foca precisamente o material utilizado. Deste modo, ainda que esta expressão se possa interpretar como uma simplificação (elipse) de «construção de alguma coisa em aço/pedra/madeira», acabando a preposição em por nos reconduzir ao galicismo, trata-se de uma boa alternativa, no plano da expressão terminológica, à ambiguidade de «construção com aço».