Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É verdade que, no português europeu, a palavra ideia rima com aldeia e que nas palavras paranoico, asteroide, europeia não há ditongo aberto, como no Brasil?

Obrigada.

Resposta:

É verdade que ideia e europeia rimam com aldeia no português europeu, e o mesmo acontece com assembleia, epopeia, estreia, odisseia e plateia: geralmente, o <e> de <eia> é  pronunciado como á fechado ([ɐ]). Assinale-se que, antes da entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico, estas palavras tinham acento agudo na letra <e> no português do Brasil, justamente para marcar um é aberto: idéia, européia, assembléia, etc.

Já em paranóico e asteróide, o ditongo grafado <oi> representa ó aberto quer no português europeu quer no português brasileiro, e leva acento agudo, tal como até recentemente acontecia no Brasil. Com o novo Acordo Ortográfico, desaparece o acento agudo nestes casos e escreve-se paranoico, asteroide.

Sublinhe-se que as palavras graves (ou paraoxítonas) que se escreviam com ditongo tónico <éi> e <ói> perdem o acento gráfico, conforme o n.º 3 da Base IX do Acordo Ortográfico de 1990:

«3 Não se acentuam graficamente os ditongos representados por ei e oi da sílaba tónica/tônica das palavras paroxítonas, dado que existe oscilação em muitos casos entre o fechamento e a abertura na sua articulação: assembleia, boleia, ideia, tal como aldeia, baleia, cadeia, cheia, meia; coreico, epopeico, onomatopeico, proteico; alcaloide, apoio (do verbo apoiar), tal como apoio (subst.), Azoia, boia, boina, comboio (subst.), tal como comboio, combo...

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a correta regência nominal do substantivo conhecimento? «Tenho conhecimento de preposição», ou «tenho conhecimento em preposição»; ou mesmo «conhecimento em informática», ou «conhecimento de informática»?

Muito obrigada!

Resposta:

A expressão em causa é «ter conhecimento». Quando se pretende indicar que o conhecimento é técnico, usa-se o plural:

(1) «Tenho conhecimentos de informática/música/inglês.»1

Se se pretende dizer que o conhecimento é relativo à existência de uma entidade, a uma ocorrência ou a uma situação, recorre-se ao singular:

(2)Tenho conhecimento de uma preposição com dez sílabas/de uma pessoa que fala com cliques/de um acidente/da crise financeira/da informática (e dos benefícios que ela trouxe).»

Só em (1) é que as preposições em e sobre alternam com de, e os substantivos surgem sem artigo; devidamente contextualizada, a expressão «ter conhecimentos» é sinónima de saber: «Sei (alguma coisa de) informática/música/inglês.» Em (2), o complemento preposicional é construído com substantivos contáveis, compatíveis com o artigo definido e com o plural; não se pode, portanto, construir um frase como «tenho conhecimento de preposição».

1 Ter conhecimentos sem complemento pode significar também «estar informado» e «conheço pessoas influentes».

Pergunta:

Referente á carta de Pedro Linhares de Braga (28/01/2009) e que Carlos Rocha, coma sempre, respondeu e esclareceu brillantemente, quixera, de forma máis comprida, agregar un miúdo comentario. Así é ben seguro, logo, que os que levan o apelido Linhares (Liñares) terán que ver na súa orixe con algunha das moitas localidades que tanto en Portugal como en Galicia existen co citado nome tal como Carlos Rocha indicou coa súa perene lucidez. Mais tamén é ben certo que ese topónimo, por súa vez, lle vén dado pola relación existente con algún liñar ou linhar (linnar, en grafía máis enxebre) que é un tipo de terreo no que se bota (sementa) liño/linho, vexetal que en tempos non moi remotos era fundamental para a elaboración da roupa e, en consecuencia, o feito de o sementar era bastante corrente.

Transmito-vos a miña admiración polo voso traballo. Recibide un afectuoso abrazo.

Resposta:

Moitas grazas pela sua achega tão simpática! Faltou de facto explicar que linhar (ou linhal) é «terreno plantado de linho» e «conjunto de plantas de linho», segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que o dá ainda como sinónimo de courela, atribuindo-lhe a acepção de «pequeno campo cultivado».

Fica também a informação sobre as grafias possíveis que a palavra podia assumir na Idade Média: de salientar Linnares, em que o <nn> surge realmente como testemunho de uma das soluções gráficas que antecederam as opções divergentes portuguesa e galega/castelhana, respectivamente, <nh> e <ñ>.1

1 O grafema <ñ> é no fundo o mesmo que <nn>, uma vez que o til é uma abreviação de <n>. O <nh> é adoptado em Portugal por influência da escrita occitânica (Sul da França); não sendo um dígrafo desconhecido na Galiza medieval, aparece ocasionalmente ao lado de <ñ> ou <nn>, grafemas de uso maioritário em documentos notariais galegos e nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X.

Pergunta:

Qual é a melhor grafia: "Cavalcanti", ou "Cavalcante"? Salvo engano, há também "Cavalcantti".

Parece tratar-se de um apelido italiano, embora ocorra muito no Brasil e, se não estou em engano, também aí em Portugal. Talvez por isto já pudesse ser considerado sobrenome luso-brasileiro, como ocorre já com Pessanha, também de origem italiana.

Possivelmente era o sobrenome de uma família italiana, que passou a Portugal e daí ao Brasil. Em Pernambuco, estado brasileiro do Nordeste, desde há muito são bastante numerosos, tendo sido no passado uma oligarquia política e aristocracia agrária, uma espécie de nobreza do lugar.

O significado do apelido parece ser «que cavalga», «cavalgante».

Sobre a sua ortografia, origem, história e significado, tem a palavra o nosso infalibilíssimo Ciberdúvidas.

Muito obrigado.

Resposta:

A respeito da grafia mais correcta, o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista as formas Cavalcante e Cavalcânti. O Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, acolhe apenas Cavalcante.

Não encontro "Cavalcantti", que reputo de forma fantasiosa, uma vez que em italiano as consoantes dobradas só ocorrem entre vogais. Quanto à grafia Cavalcanti, só pode ser italiana, porque na ortografia portuguesa as formas sem acento gráfico acabadas em -i são todas lidas como palavras agudas: aqui, convivi, etc. Em conclusão, Cavalcante ou Cavalcânti são aportuguesamentos adequados de um apelido|sobrenome de origem italiana que, como muitos outros, termina em -i mas é palavra grave.

Passando à origem e ao significado deste sobrenome|apelido, José Leite de Vasconcelos (Antropononímia Portuguesa, 1928, pág. 314) diz ter vindo ele primeiro para Portugal e só depois para o Brasil:

«Em 1558 refugiou-se em Portugal um Antonio Cavalcanti, um filho do qual passou a Pernambuco. [...] Esta familia teve brasão no séc. XVIII [...].»

A Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura dedica-lhe um artigo com a entrada Cavalcanti, do qual se transcreve a seguinte passagem:

«Parece que a 1.ª pessoa desta fam[ília] que veio a Portugal foi Filipe C[avalcanti] ou seu pai, Antonio C[avalcanti] (1558), em tempo de el-rei D. Sebastião. Os C. eram uma fam. muito categorizada em Florença, mas a sua geneal[ogia] é dada por formas muito diversas.»

É de lembrar que este é também o apelido|sobrenome de Gui...

Pergunta:

O sistema de transcrição fonética Hepburn estará por alguma forma relacionado com a fonética portuguesa do século XVI através da transliteração organizada pelos monges jesuítas portugueses que viviam no Japão naquela época? Pergunto isto, porque a designação japonesa dada em caracteres latinos que eu conheço como “Dojotyo” (director ou responsável que preside um “dojô” = recinto de prática religiosa ou arte marcial), quanto eu sei, deve ser proferida “dô-jô-tchiô”, pois a consoante /t/ representada no grupo fonético “tyo” com o apoio da semivogal /y/ é palatalizada, tal como ainda hoje boa parte dos brasileiros pronuncia o vocábulo /tio/ (tchio) designação para irmão dos pais, porém diferençado apenas pelo quase emudecimento da semivogal /y/ do japonês /tyo/ que se realiza nesse contexto quase como “tcho”. Como eu também sei que os japoneses durante a Segunda Guerra Mundial usaram um sistema de criptografia baseado precisamente nessa transliteração organizada no século XVI, creio que não será nada extraordinário que o americano Hepburn o tenha rebuscado no século XIX.

Resposta:

Só para situar esta questão, começo por esclarecer que o sistema Hepburn de transcrição do japonês foi criado pelo missionário americano J. C. Hepburn (1815-1911), que publicou em 1867 o primeiro dicionário de inglês-japonês. Quanto à hipótese levantada, ela é sugestiva, mas, sem querer rejeitá-la, porque não tenho elementos que a confirmem ou infirmem, parece-me que estudos de filologia e linguística do século XIX  já representavam as consoantes dentais palatalizadas como "ty" e "dy". Ignoro se elas reflectem alguma convenção anterior ao desenvolvimento dos estudos linguísticos em finais do século XVIII, graças à investigação sobre o indo-europeu.

É possível que o conjunto dos missionários jesuítas no Oriente (incluía falantes de castelhano) tenha recorrido ao grafema <y>, porque, tendo este tradicionalmente o valor de uma semivogal, permite figurar a articulação mais próxima dessa dental em japonês. Mas não creio que algum dos jesuítas portugueses pronunciasse ou conhecesse dentais palatalizadas na língua materna. É que a palatalização destas consoantes na variedade brasileira pode não ser contemporânea da missionação portuguesa no Japão; mas, mesmo que o seja, não tem de ser generalizada aos falares portugueses do século XVI.